No livro "O Método 4, as Idéias - Habitat, vida, costumes, organização", Edgar Morin, entre outras coisas, contextualiza o termo "noosfera" e apresenta um posicionamento sobre como os mitos continuam presentes na atualidade, ainda que tentemos destruí-los com discursos que hasteiam a bandeira do racionalismo, do cientificismo e positivismo. Um exemplo vulgar e de rápida assimilação seriam os movimentos pró-ateísmo que muitos podem ter acompanhado nas redes sociais, recentemente. Menciono especificamente aqueles que põem o discurso mitológico e religioso em detrimento ao científico, anulando-o em favor de uma idéia de razão e verdade a qual Morin, no trecho abaixo, compara a uma deidade.
Mas, acima de tudo, para fazer paralelo com as temáticas do blog e com a minha pesquisa, acredito que esse texto ponha em voga o elemento mitológico/subjetivo/irracional que se encontra nas ideologias ou particularmente no fenômeno do nazismo. Já tratei disso no blog com uma tradução do texto de Jung sobre Wotan e o nazismo, bem como ao publicar o trabalho de um estudante de psicologia sobre o fracasso da razão durante tal período histórico, ou mesmo ao comentar o livro Vampyroteuthis infernalis, de Vilém Flusser e traduzir uma resenha de A Terrible Love of War, de James Hillman. Deixo então, para leitura e desfrute, esse subtítulo "Os ideomitos" de Edgar Morin:
Os ideomitos
Acreditou-se no século XIX e no começo do século XX que a
promoção das ideias laicas correspondia à evolução necessária e progressiva do mito à razão, da religião à ciência; o
desaparecimento gradual dos mitos bioantropomorfos e o estreitamento da área
religiosa deviam completar-se, o que corresponderia ao triunfo das verdades
positivas, racionais e científicas.
Ora essa concepção, que Auguste Comte formulou como lei
evolutiva, era um mito e, de resto, Comte teve a loucura genial de coroar a era
positiva com uma nova religião, concreta e universal, na qual a adorada
Clotilde de Vaux encarnava a Humanidade-Mátria.
De maneira mais convincente, Max Weber concebera o
desaparecimento gradual dos mitos, religiões, ritos, tradições, como um
processo de secularização em proveito das ideologias, da ética e das crenças
subjetivas. É interessante salientar que dois ramos divergentes saíram dessa
perspectiva; por um lado, o da
interiorização, da subjetivização, da estetização. Efetivamente, podemos
constatar que os gênios, demônios, espectros, que povoavam a natureza, foram
despachados para uma noosfera estética, tornando-se heróis de romances ou stars
de cinema, ou migraram para os interiores psíquicos, tomando a forma fluida das
pulsões e sentimentos. Podemos pensar que esses desenvolvimentos estéticos e
subjetivos estão dialogicamente ligados aos desenvolvimentos antinômicos e
concomitantes do pensamento racional-empírico-lógico e dos sistemas abstratos
de ideias, teorias científicas, doutrinas, ideologias.
Pudemos nos questionar sobre as ressurreições dos mitos no
campo estético das novas artes (romance popular, cinema, televisão, esporte) de
massa (Morin, 1957, 1962). Pudemos igualmente nos surpreender com a resistência
das grandes religiões e mesmo com as suas contra-ofensivas vitoriosas nas
terras desoladas do desencantamento e do niilismo. Mas é necessário, sobretudo, ver o que Max Weber não viu: a reinvasão
do mito e mesmo da religião nos sistemas de ideias aparentemente racionais.
Georges Bataille (1972, PP. 393-394), por seu lado, bem
observou a existência no mundo moderno de uma “avidez de mitos”. Acrescentemos:
novos mitos fizeram ninho no próprio coração das ideias abstratas. Em outros termos: as estruturas
arcaicas do mito apropriaram-se das estruturas evoluídas da ideia.
O Wittgenstein dos manuscritos de 1931 descobrira, durante
uma longa meditação sobre O Ramo de ouro,
de Frazer, não somente “que a eliminação da magia tem... o caráter da magia”,
mas também que a metafísica podia ser considerada “como uma espécie de magia”.
Freud perguntava-se, mais ou menos na época (1933), se a própria teroia
científica não era mitológica.
Essa questão merece ser colocada. É certo que as teorias
científicas, nos seus aspectos abertos e profanos, situam-se nas antípodas do
mito. Mas o seu núcleo comporta uma zona cega onde pode instalar-se um fermento
que transforma a ideia, tornada soberana, em mito; assim, a ideia pitagórica da
realeza do Número torna-se mito, como ocorre com a ideia galileana, newtoniana,
laplaciana, da ordem matemática do mundo...
Toda passagem a ser de um sistema de ideias comporta um
potencial mitologizante. Toda idealização/racionalização doutrinária tende a
autotranscendentalizar o sistema. A partir daí, o mito pode instalar-se no
núcleo do sistema abstrato e divinizar as ideias mestras. Assim, opera-se a
mitologização da ideia abstrata. As teorias científicas evitam a doutrinização, mas o seu núcleo permite
a mitificação. Os themata são ideias mestras
obsessivas que tendem a impregnar-se de força mítica. Assim, embora
permanecendo empírico-racionais, as teorias científicas podem absorver mito nos
seus núcleos.
O mito introduz-se clandestinamente, como um vírus que se
introduzisse no DNA do hóspede e nele se integrasse, suscitando desde então uma
atividade propriamente mitológica mais invisível. Melhor ainda: o mito invadiu o que lhe parecia mais hostil
e que deveria tê-lo liquidado.
Se o mito pode introduzir-se no núcleo das teorias
científicas sem, no entanto, controlá-lo totalmente, pode invadir plenamente as
doutrinas e as ideologias. Enquanto as teorias científicas permanecem profanas
por natureza, a despeito da tendência própria a todo sistema de ideias a
autotranscendentalizar, as doutrinas auto-sacralizam-se e auto-idolatram-se. O
conceito fundamental torna-se soberano do universo. A doutrina exige a veneração
dos seus adeptos, que devem obedecer-lhe literalmente, citá-la ritualmente e utilizar a conserva fiada litânica de um
quase culto. Assim, a transcendentalização e a deificação características da
mitologia e da religião entram sub-repticiamente, mas com profundidade, no
mundo laico da doutrina.
Acontece o mesmo com a ideologia. Como todo sistema de ideias,
a ideologia comporta um núcleo que determina a organização dos conceitos e a
natureza de sua visão de mundo. Esse núcleo não se limita a realizar a fusão
(ou a confusão) entre paradigmas/axiomas e valores, mas contém, enterrado em
si, uma substância mítica confundida com a sua própria substância doutrinal. Os
valores adquirem uma vida superior que os torna míticos: a Justiça, a Ordem, a
Liberdade, a Igualdade, o Amor, a Verdade, o Homem, embora permanecendo
valores, tornam-se mitos e divinizam-se. Assim, o homem, fonte de direito e de
fraternidade na filosofia humanista, acha-se, de qualquer maneira, divinizado
na ideologia humanista, pela qual
alcança uma dignidade sobrenatural que o destina à conquista e ao controle da
Natureza. A ideia do homem e o mito do homem contaminam-se reciprocamente, e o
mito tendem a apossar-se da ideia. Diferentemente do mito tradicional, o mito
moderno é invisível sob a abstração ideal e sob a lógica do sistema. Torna-se
tanto mais invisível quanto mais usa a máscara da ciência “desmitificadora”.
Assim, o mito da salvação terrestre tomou a forma do “materialismo científico”.
Hoje, no nosso mundo ocidental, só de maneira estética, sob
a forma romanesca ou cinematográfica, consumimos os mitos do tipo arcaico,
antigo ou exótico, as narrativas bioantropomorfas. Os nossos mitos, profundos e
tirânicos, encontram-se embutidos em cápsulas de ideias abstratas, inclusive na
ideia desmitificadora da Razão. Virulentos, fazem parte das nossas ideologias.
Há mito tipicamente moderno quando há, nas ideias fundamentais de uma ideologia,
coagulação de fortes cargas de verdade cognitiva e de verdade ética (valores) e
quando essas ideias se tornam autoritárias, dominadoras, sacralizadas,
soberanas. Assim, a ideologia contém, subterraneamente, no seu coração as estruturas
do pensamento p.181
Simbólico-mágico-mítico, escondidas sob as do pensamento
lógico-empírico-racional.
A virulência de uma ideologia pode tornar-se extrema. A
ideologia, vale lembrar, sempre teve uma força motora derivada da sua forte
carga mitológica e do seu caráter político,
isto é, de práxis, na cidade. As ideologias apossam-se e subjugam então os
humanos, como faziam os deuses. É certo que os homens obtêm, em troca,
satisfações psíquicas; possuem a verdade que os possui, controlam o universo
através de uma ideologia, gozam, como em verdadeiros coitos psicológicos, com a
repetição dos seus themata
obsessivos, os quais fornecem à doutrina o seu erotismo enfeitiçador. Logo, os
humanos chegam a viver e a morrer pela ideia.
Aparentemente, os Tempos modernos caracterizam-se pela
dominação dos sistemas abstratos de ideias ou ideologias e pelo retrocesso dos
sistemas mitológicos e religiosos. Mas a grande e real laicização da noosfera
não deve mascarar a invasão dos mitos no seu próprio interior. Assim, vimos a
razão, bifurcando da racionalidade para a racionalização, tornar-se ídolo e
mesmo deusa. A razão só existe como atividade crítica e autocrítica, mas
tornou-se uma entidade em si, arrogando-se a soberania, a providencialidade e,
no limite, a divindade. Do mesmo modo, a ideologia científica constituiu-se
como sistema ao mesmo tempo racionalizador e idealista, suscitando a
aglutinação em si dos mitos da Certeza, da Razão, do Progresso; assim, a
ciência viu-se atribuir a missão providencial de guiar a humanidade para a
salvação terrestre.
É nessas condições que a palavra Razão se torna insensata e
a palavra ciência, anticientífica. Adorno e Horkheimer viram bem que a Razão
(fechada) torna-se ela própria autoritária: ao estender a sua universalidade
potenciral ao universo, apropria-se do universo, identifica a sua ordem à ordem
cósmica ou histórica e apossas-se das leis da Natureza. A Razão, com maiúscula,
abstrata e racionalizadora, instaura uma guilhotina ideológica e uma
potencialidade totalitária.
Já portadoras de paixões e de violências, a mitificação e a deificação que penetram na ideologia abstrata serão
penetradas pela fria crueldade da lógica, pelo delírio gelado da
racionalização. Assim, o nazismo e o stalinismo associaram o frio absoluto da
sua lógica e o fogo devorador da sua salvação para realizarem as maiores
exterminações da história.
O fenômeno chave deste século é o desfraldar mito-religioso
de grandes ideologias políticas com, primeiro, o triunfo e, depois, no fim do
século, a erosão (provisória? Definitiva?) dos mitos da salvação terrestre.
MORIN, Edgar. O Método 4. As idéias. Habitat, vida, costumes, organização. Porto Alegre: Editora Sulina, 1998