sábado, 31 de março de 2012

Wotan, de Carl Gustav Jung

Recentemente, na aula de Culturologia de Flusser, no mestrado, o professor mencionou sobre a questão da sombra concebida pelo psiquiatra suíço Carl Gustav Jung. Fiquei bastante curiosa em relação a isso, porque pode me ajudar muito durante a pesquisa sobre a obra de Gottfried Helnwein, que é toda composta por um jogo forte de luz e sombra - sendo esta mais presente do que a outra. Acabei achando, então, um texto de Jung sobre o nazismo, o qual analisa o fenômeno de um ponto de vista mítico-psicológico, relacionando o evento com o re-despertar de um deus germânico chamado Wotan (uma entidade com características entre Dionísio, Mercúrio, Kronos e Hermes).

Nesse post, deixo apenas a tradução rápida que fiz do texto "Wotan", originalmente publicado em março de 1936, para em uma postagem futura analisar melhor o conteúdo do texto. O artigo, em inglês, pode ser lido aqui.




[Originalmente publicado como WOTAN, Neue Schweizer Rundschau (Zurique). n.s. III
(Março, 1936), 657-69. Republicado em AUFSATZE ZUR ZEITGESCHICHTE
(Zurique, 1946), 1-23. Tradução de Barbara Hannah em ESSAYS ON CONTEMPORARY EVENTS
(Londres 1947), 1-16; esta versão foi consultada.
Mote, traduzido por H. C. Roberts:

"Na Alemanha, diversas seitas irão surgir,
Serão muito próximas a um alegre paganismo.
O coração cativado e as pequenas recepções
Abrirão os portões para que se pague o verdadeiro dízimo.
- Profecias de Nostradamus, 1555

En Germanie naistront diverses sectes,
S'approchans fort de l'heureux paganisme:
Le coeur captif et petites receptes
Feront retour a payer la vraye disme.
- Propheties de Maistre Michel Nostradamus, 1555

Quando olhamos para a época anterior a 1914, encontramo-nos vivendo em um mundo de eventos que seriam inconcebíveis antes da guerra. Nós estávamos começando a entender uma guerra entre nações civilizadas como uma fábula, pensando que tal absurdo se tornaria cada vez menos possível em nosso mundo organizado e civilizado. E o que aconteceu depois da guerra foi um verdadeiro sabbat das bruxas.  Em todos os lugares, revoluções fantásticas, violentas alterações do mapa, regressões da política aos protótipos mediavais ou até mesmo antigos, estados totalitários que engolem seus vizinhos e ultrapassam todas as anteriores teocracias com suas tentativas absolutistas, perseguições de cristãos e judeus, assassinatos políticos indiscriminados e, finalmente, nós temos testemunhado um frio ataque pirata contra pessoas pacíficas e parcialmente civilizadas.

Com tais coisas acontecendo no mundo, não é menos surpreendente que haja, em menor escala, manifestações igualmente curiosas e em outras esferas. Na esfera da filosofia, nós devemos esperar algum tempo antes de qualquer pessoa ser capaz de avaliar o tipo de era na qual estamos vivendo. Mas na esfera da religião, nós podemos ver de uma só vez que algumas coisas muito significantes têm acontecido. Nós não precisamos nos sentir surpresos que, na Rússia, os coloridos esplendores da Igreja Ortodoxa Oriental tenham sido substituídos pelo Movimento dos Sem-Deus - de fato, suspirou-se de alegria quando houve a emergência da névoa de uma igreja ortodoxa, com sua multidão de lâmpadas que entrou numa mesquita honesta, onde a onipresença sublime e invisível de Deus não foi preterida por um excesso de paranafernálias sagradas. Tão insípido e deploravelmente ignorante quanto é isto, e também o lastimável baixo nível espiritual de uma reação "científica", foi a inevitabilidade com que o iluminismo "científico" do século XIX fosse um dia despontar na Russia.

Mas o que é mais que curioso - de fato, picante em certa medida - é que um antigo deus da tempestade e frenesi, o intensamente silencioso Wotan, iria despertar como um vulcão instinto, para uma nova atividade num país civilizado que há muito tempo supôs ter superado a Idade Média. Nós o vimos renascer no Movimento da Juventude Alemã e, logo no começo, o sangue de vários cordeiros foi vertido em nome de sua ressurreição. Armados com mochila e alaúde, jovens loiros, e algumas vezes também garotas, foram reconhecidos como incansáveis andarilhos em todas as estradas do Cabo Norte à Sicília; fiéis devotos de um deus errante. Mais tarde, próximo ao fim da República de Weimar, o papel do andarilho foi substituído por milhares de desempregados que eram vistos em vários lugares, em suas jornadas sem objetivo. Em  1933, eles não mais caminhavam, mas marchavam às centenas de milhar. O movimento hitlerista literalmente  conquistou toda a Alemanha, desde garotos de cinco anos a veteranos, e produziu um espetáculo de uma nação migrante. Wotan, o andarilho, estava em ação. Ele podia ser visto, mais timidamente numa casa de conferência de uma seita simples e folclórica no norte da Alemanha, disfarçado de Cristo sentado em um cavalo branco. Eu não sei se essas pessoas estavam cientes das antigas conexões de Wotan com as figuras de Cristo e Dionísio, mas não é muito provável.

Wotan é um andarilho incansável que cria instabilidade e excita lutas ora aqui, ora lá, e a mágica funciona. Ele logo foi transformado pelo cristianimo em demônio e somente viveu numa fraca tradição local como um caçador fantasma que era visto com sua comitiva, brilhando como um fogo-fátuo através de noites de tempestade. Na Idade Média, o arquétipo do andarilho incansável era representado por Ahasuerus, o Judeu Andarilho, que não era uma lenda judia, mas cristã. O tema do andarilho que não era aceito por Cristo foi projetado nos judeus, da mesma forma como nós sempre redescobrimos nossos conteúdos psíquicos inconscientes nas outras pessoas. De qualquer modo, a coincidência do anti-semitismo com o redespertar de Wotan é uma sutileza psicológica que talvez seja válido mencionar.

Os jovens alemães que celebraram o solstício com o sacrifício de ovelhas não eram os primeiros a ouvir o farfalhar das florestas primitivas da inconsciência. Eles foram antecipados por Nietzsche, Schuler, Stefan George e Ludwig Klages. A tradição literária do Rhineland e no sul do Main tem uma clássica imagem da qual não se pode se livrar facilmente; toda interpretação da intoxicação e exuberância é apta de nos levar de volta para os modelos clássicos, a Dionísio, ao puer aeternus e ao Eros cosmogônico. Sem dúvida, isso soa melhor aos ouvidos acadêmicos que interpretam tais coisas como se fosse Dionísio, mas Wotan pode ser uma interpretação mais correta. Ele é o deus da tempestade e da frenesi, o desencadeador de paixões e luxúria pela batalha; além disso, ele é um mágico supremo e um artista da ilusão, o qual é versado em todos os segredos de uma natureza oculta.

O caso de Nietzsche é certamente peculiar. Ele não tinha nenhum conhecimento da literatura germânica; ele descobriu o "filisteu cultural"; e a anunciação de que "Deus está morto" levou ao encontro de Zarathustra com um deus desconhecido de uma forma inesperada, o qual às vezes surgia como um inimigo e em outras disfarçado de Zarathustra. Zarathustra também era um adivinho, um mágico e vento de tempestade:

E como um vento, devo eu soprar entre eles e, com meu espírito, devo tomar a respiração de seus espíritos; porque meu futuro deseja isso. Realmente, Zarathustra é um forte vento para todos aqueles que são baixos; e esse conselho dá ele a seus inimigos e para todos que cospem e vomitam: "Cuidado ao cuspir contra o vento".


E quando Zarathustra sonhou que ele era o guardião dos túmulos na "solitária fortaleza da montanha da morte", e estava fazendo um forte esforço para abrir os portões, repentinamente


Um vento ruidoso rompeu os portões; assoviando, gritando e lamentando, ele lançou um caixão negro diante de mim.
E entre o ruído e assovio e grito, o caixão se abriu e jorrou mil gargalhadas.


O discípulo que interpretou o sonho disse a Zarathustra:


Você não é o vento com assovio estridente, que abre os portões da fortaleza da morte?
Você não é o caixão preenchido de vida com malícia alegre e caretas angelicais?


Em 1863 ou 1864, em seu poema AO DEUS DESCONHECIDO, Nietzsche escreveu:


Eu devo e irei conhecer a ti, Ser Desconhecido,
Que procuras nas profundezes de minh'alma,
E sopras através da minha vida como uma tempestade,
Inalcansável, e ainda assim meu parente!
Eu devo e irei conhecer a ti, e servir a ti.

Vinte anos mais tarde, em sua CANÇÃO MISTRAL, ele escreveu:


Vento mistral, perseguidor de nuvens,
Assassino da tristeza, varredor dos céus,
Vento de tempestade furioso, como eu te amo!
E nós dois somos os primeiros frutos
Do mesmo útero, sempre predestinados
Ao mesmo destino?

No ditirambo conhecido como LAMENTO DE ARIADNE, Nietzsche é completamente vítima do deus-caçador:


Esticado, estremecido,
Como algo meio morto cujos pés estão aquecidos,
Sacudido por febres desconhecidas,
Tremendo com gélidas flechas enfiadas,
Caçado por ti, ó pensamento,
Indizível! Velado! Horrível!
Tu, caçador, atrás da nuvem.
Derrubado por um relâmpago,
Teus olhos zombeteiros encaram-me da escuridão!
Assim, eu me deito.
Contorcido, torcido, atormentado
Com todas as eternas torturas,
Arrebatado
Por ti, caçador cruel,
Tu, desconhecido - Deus!

Esta notável imagem do deus-caçador não é uma mera figura discursiva do ditirambo, mas é baseada em uma experiência que Nietzsche teve quando tinha quinze anos, em Pforta. Ela é descrita em um livro da irmã de Nietzsche, Elizabeth Foerster-Nietzsche. Enquanto ele estava refletindo em uma sombria floresta à noite, foi aterrorizado por um "horripilante grito vindo de um asilo para lunáticos vizinho", e logo depois ele ficou frente a frente com um caçador cujas "características eram selvagens e estranhas". Soprando seu assovio entre os lábios, "num vale cercado por arbustos selvagens", o caçador "soprou tal qual uma explosão estridente", de forma que Nietzsche perdeu sua consciência - mas despertou novamente em Pforta. Era um pesadelo. É significante que, em seu sonho, Nietzsche que, em realidade pretendia ir a Eisleben, cidade de Luther, conversou com o caçador sobre questões a respeito do "Teutschenthai" (Vale dos Alemães). Ninguém com ouvidos não reconhece o estridente assovio do deus da tempestade em uma floresta noturna.

Foi este apenas o único filólogo clássico de Nietzsche que chegou à conclusão de um deus chamado Dionísio em vez de Wotan - ou isso era talvez apenas por causa de seu fatídico encontro com Wagner?

Em seu REICH OHNE RAUM, que foi publicado pela primeira vez em 1919, Bruno Goetz viu o segredo dos eventos que aconteceriam na Alemanha na forma de uma visão muito estranha. Eu nunca me esqueço deste pequeno livro, porque ele me prendeu a atenção na época assim como uma previsão do clima na Alemanha. Ele antecipou o conflito entre o reino das idéias e a vida, entre a natureza dual de Wotan como um deus da tempestade e um deus de reflexões secretas. Wotan desapareceu quando seus carvalhos caíram e reapareceram quando o deus cristão provou ser muito fraco para salvar a cristandade de um fatricídio. Quando o Sagrado Pai em Roma pôde apenas impotentemente lamentar diante de Deus, o destino do grex segregatus, o velho caçador caolho, do topo da floresta alemã, riu e selou o Sleipnir.

Nós estamos sempre convencidos de que o mundo moderno é um mundo razoável, baseando nossa opinião nos fatores econômicos, políticos e psicológicos. Mas se nós nos esquecermos por um momento de que nós estamos vivendo o ano de Nosso Senhor, 1936, e deixar de lado nossa razoabilidade bem-intencionada e demasiada humana, poderemos ter o fardo de um Deus ou de deuses como responsabilidade para eventos contemporâneos em vez de um homem. Nós podemos achar Wotan adequado para uma hipótese casual. De fato, eu arrisco uma sugestão herética de que as insondáveis profundezas do caráter de Wotan explicam mais o Nacional Socialismo do que todos os três fatores razoáveis juntos. Não há dúvida de que cada um desses fatores explicam um importante aspecto do que está acontecendo na Alemanha, mas Wotan explica ainda mais. Ele é particularmente esclarecedor para um fenômeno público que é tão estranho a todos não-alemães, que ele permanece incompreensível, até mesmo depois da mais profunda reflexão.

Talvez nós devêssemos resumir esse fenômeno público como Ergriffenheit - um estado de apreensão ou possessão. O termo postula não apenas um Ergriffener (aquele que é possuído) mas também um Ergreifer (aquele que possui). Wotan é um Ergreifer dos homens e, ao menos que se deseje deificar Hitler - o que foi o que realmente aconteceu -, ele é realmente a única explicação. É verdade que Wotan compartilha esta qualidade com seu primo Dionísio, mas este parece ter exercitado sua influência principalmente nas mulheres. As maenads eram uma espécie de tropa feminina e, de acordo com relatos míticos, eram suficientemente perigosas. Wotan reservou-se aos bersekers, que encontram sua vocação como os Camisas Negras dos reis míticos.

Uma mente que é ainda infantil pensa os deuses como entidades metafísicas existindo ao seu bel prazer, ou então os entende como invenções lúdicas ou supersticiosas. De qualquer ponto de vista, o paralelo entre Wotan revivius e a tempestade social, política e psíquica que está sacudindo a Alemanha pode ter pelo menos um valor de parábola. Mas uma vez que deuses são sem dúvida personificações de forças psíquicas, afirmar suas existências metafísicas é mais uma presunção intelectual do que a opinião que eles jamais poderiam ter inventado. Não que "forças psíquicas" tenham qualquer coisa a ver com a mente consciente - como somos amigáveis ao brincar com a idéia de que a consciência e a psyche são idênticas. Isso é apenas outro pedaço da presunção intelectual. "Forças psíquicas" têm muito mais a ver com o reino da inconsciência. Nossa mania por explicações racionais obviamente tem suas raízes no nosso medo da metafísica - ambos são sempre irmãs hostis. Portanto, tudo que é inesperado e que se aproxima de nós, vindo do reino obscuro, é considerado tanto como vindo de fora e, portanto, como real, ou então como uma alucinação e, portanto, não verdadeiro. A idéia de que qualquer coisa pode ser real ou verdadeira quando não vinda do exterior tem começado a fortemente aflorar no homem contemporâneo.

Em prol de um melhor entendimento e para evitar preconceito, nós poderíamos certamente dispensar o nome de "Wotan" e, em vez disso, falar do furor teutonicus. Mas nós deveríamos apenas estar dizendo o mesmo ou não tanto, porque o furor nesse caso é uma mera psicologização de Wotan e nos diz nada mais do que os alemães estarem em um estado de "fúria". Nós, portanto, perdemos de vista a característica mais peculiar de todo esse fenômeno, isto é, o aspecto dramático do Ergreifer e do Ergriffener. O mais impressionante sobre o fenômeno alemão é que nenhum homem, o qual está obviamente "possuído", infectou toda uma nação com tal extensão a ponto de fazer tudo funcionar e rolar rumo à perdição.

A mim, parece que Wotan se sustentou como uma hipótese. Aparentemente, ele realmente foi o único a permanecer adormecido na montanha Kyffhauser, até que os corvos o chamaram e anunciaram o nascer do dia. Ele é um atributo fundamental da psique alemã, um fator psíquico irracional que age na alta pressão da civilização, como um ciclone que sopra tudo. Apesar de sua irritabilidade, os adoradores de Wotan parecem ter julgados as coisas mais corretamente do que os adoradores da razão. Aparentemente, todos se esqueceram que Wotan é um ponto de partida germânico de primeira importância, a mais verdadeira expressão e inigualável personificação de uma qualidade fundamental, que é característica particular dos alemães. Houston Stewart Chamberlain é um sintoma que levanta suspeita de que outros deuses velados podem estar dormindo em outro olugar. A ênfase na raça alemã - comumente chamada "ariana" - a herança germânica, sangue e solo, as canções Wagalaweia, a cavalgada das Valquírias, Jesus como um herói loiro de olhos azuis, a mãe grega de St. Paul, o demônio como um Alberich intenacional numa aparência judaica ou maçônica, a aurora boreal nórdica como a luz da civilização, as raças inferiores mediterrâneas - tudo isso é o cenário indispensável para o drama que está tomando conta e, no fundo, tudo significa a mesma coisa: um deus possuiu os alemães e suas casas estão preenchidas por um "furioso vento". Foi logo após Hitler tomar o poder, se não estou enganado, que um desenho apareceu na PUNCH, o qual era um delirante berseker se livrando de seus elos. Um furacão se alastrou pela Alemanha enquanto nós continuávamos acreditando num tempo bom.

As coisas estão comparavelmente quietas na Suíça, apesar de ocasionalmente ocorrer uma brisa vinda do norte ou do sul. Algumas vezes, ela tem um som ligeiramente ameaçador, às vezes ela soa tão inofensiva ou nem chega a alarmar ninguém. "Deixe os cães sonolentos deitarem" - nós nos damos bem com essa sabedoria proverbial. Algumas vezes é dito que os suíços são singularmente avessos a transformá-los em um problema. Eu devo refutar essa acusação: a Suíça tem seus problemas, mas eles não iriam admitir por nada nesse mundo, mesmo que eles vissem a forma como o vento está soprando. Nós, então, pagamos nosso tributo para a época da tempestade e tensão na Alemanha, mas nós não devemos jamais mencionar isso, e isso nos permite de nos sentirmos muito superiores.

Está acima de todos os alemães aquele que tem uma oportunidade, talvez única na história, de olhar para seu próprio coração e aprender o que esses perigos da alma foram, com os quais a cristandade tentou salvar a humanidade. A Alemanha é uma terra de catástrofes espirituais, onde a natureza nunca cria mais do que uma pretensa paz com uma razão mundial. O perturbador da paz é um vento que sopra na Europa, vindo da vastidão da Ásia, varrendo fortemente desde a Trácia ao Báltico, varrendo as nações como se fossem folhas secas ou inspirando pensamentos que sacodem o mundo em suas bases. É um Dionísio elemental agindo numa ordem de Apolo. O agitador dessa tempestade é chamado Wotan e nós podemos conhecer muito dele a partir da confusão política e da revolta espiritual que ele tem causado ao longo da história. Para uma investigação mais exata de seu caráter, no entanto, nós devemos voltar à era dos mitos, que não explica tudo em termos humanos, com suas capacidades limitadas, mas procuremos a causa mais profunda na psique e em seus poderes autônomos. As mais recentes intuições humanas personificaram esses poderes como deuses e descreveu-os nos mitos com grande cuidado e circunstanciedade, conforme seus vários personagens. Isso poderia ser feito mais prontamente conforme os firmemente estabelecidos tipos ou imagens que estão inatos na inconsciência de muitas raças e exercitar uma direta influência sobre eles. Conforme o comportamento de uma raça tem seu próprio caráter provindo de imagens subjacentes, nós podemos falar de um Wotan arquétipico. Como um fator psíquico autônomo, Wotan produz efeitos na vida coletiva de um povo e assim revela sua própria natureza. Wotan tem uma biologia peculiar, distante da natureza humana. É apenas de tempos em tempos que os indivíduos cedem à irresistível influência desse fator inconsciente. Quando ele está quieto, não se está mais ciente do arquétipo de Wotan do que uma epilepsia latente. Os alemães que eram adultos em 1914 poderiam ter previsto o que eles seriam hoje? Tais transformações incrívels são o efeito do deus do vento que "sopra onde quer e tu ouves o som dele, mas não pode dizer de onde vem, nem para onde vai". Ele engole tudo que está em seu caminho e derruba tudo que não está fortemente enraizado. Quando o vento sopra, ele sacode tudo que está inseguro, seja por fora ou por dentro.

Martin Ninck recentemente publicou uma monografia que é a mais bem-vinda adição ao nosso conhecimento sobre a natureza de Wotan. O leitor não precisa temer que esse livro seja nada mais do que um estudo científico escrito com uma indiferença acadêmica sobre o objeto. Certamente o direito à objetividade científica é totalmente preservado e o material tem sido coletado com extraordinária profundidade ao apresentar umaforma incomum. Mas, apesar de tudo, sente-se que o autor é vitalmente interessado nisso, que a corda de Wotan está vibrando nele também. Isto não é uma crítica - pelo contrário, é um dos maiores méritos do livro, o qual sem esse entusiasmo teria facilmente se degenerado num catálogo tedioso.

Ator representa Wotan na ópera As Valquírias,
de Richard Wagner
Ninck esquematiza um retrato realmente magnífico do arquétipo alemão Wotan. Ele o descreve em dez capítulos, usando todas as fontes disponíveis, como o berseker, o deus da tempestade, o andarilho, o guerreiro, o deus Wusch e Minne, o senhor dos mortos e de Einherjar, o mestre do conhecimento secreto, o mágico, o deus dos poetas. Nem as Valquírias ou as Fylgja foram esquecidas: elas formam parte do cenário mítico e fatídico de Wotan. O inquérito de Ninck sobre o nome e sua origem é particularmente instrutivo. Ele mostra que Wotan não é só um deus da fúria e do frenesi que incorpora os aspectos institivos e emocionais do inconsciente. Seu lado intuitivo e inspirador também é manifestado conforme ele entende as runas e pode interpretar o destino.

Os romanos nomeram Wotan como Mercúrio, mas seu caráter não corresponde realmente a nenhum deus romano ou grego, apesar de haver certas semelhanças. Ele é um andarilho como Mercúrio, por exemplo, governa os mortos como Plutão e Kronos e está conectado a Dionísio conforme seu frenesi emocional, particularmente em seu aspecto mântico. É surpreendente que Ninck não mencione Hermes, o deus da revelação, que como pneuma e nous é associado ao vento. Ele poderia ser o elo com o pneuma cristão e o milagre da Pentecostes.

Assim como Poimandres (o pastor dos homens), Hermes é um Ergreifer como Wotan. Ninck corretamente aponta que Dionísio e outros deuses gregos sempre permaneceram sob a suprema autoridade de Zeus, o que indica uma diferença fundamental entre o temperamento grego e germânico. Ninck assume uma afinidade interior entre Wotan e Kronos, e a derrota deste último talvez seja um sinal de que o arquétipo de Wotan foi uma vez suprimido e disassociado em tempos pré-históricos. Em todos os eventos, o deus germânico representa uma totalidade em um nível muito primitivo, uma condição psicológica na qual o desejo do homem era quase idêntico ao do deus e inteiramente subjugado à sua compaixão. Mas os gregos tinham deuses que ajudavam os homens contra outros deuses; de fato, Zeus, o pai de todos os deuses, não estava distante do ideal de um déspota benevolente e declarado.

Não estava na natureza de Wotan hesitar e mostrar sinais de velhice. Ele simplesmente desapareceu quando os tempos se voltaram contra ele e permaneceu invisível por mais de mil anos, trabalhando anônima e indiretamente. Arquétipos são leitos que secam quando suas águas somem, mas os quais podem ser encontrados novamente a qualquer momento. Um arquétipo é como um velho trajeto de água, no qual a água da vida fluiu por séculos, alcançando profundos canais por ela mesma. Quanto mais longe ela for em seus canais, mais cedo ou mais tarde, a água irá retornar à sua antiga cama.

A vida do indivíduo como um membro da sociedade e particularmente como parte do Estado pode estar regulada como um canal, mas a vida das nações é um grande rio corredio que está completamente além do controle humano, nas mãos d'Aquele que sempre foi mais forte que os homens. A Liga das Nações, que supostamente teria autoridade supranacional, é considerada por alguns como uma criança que precisa de carinho e proteção e, por outros, como um aborto. Portanto, a vida das nações segue sem verificação ou orientação, não consciente de onde está indo, como uma pedra rolando de cima de um monte, até ser parada por um obstáculo mais forte que ela. Eventos políticos vão de um impasse a outro, como um torrente pego em valas, riachos e pântanos. Todo controle humano chega a um fim quando o indivíduo é pego em um movimento de massa. Então, os arquétipos começam a funcionar, assim como acontece, também, na vida dos indivíduos quando eles são confrontados com situações que não podem ser lidadas de nenhuma maneira familiar. Mas o que o tão aclamado Führer faz com um movimento de massa pode ser claramente visto se nós voltarmos nossos olhos ao norte ou sul de nosso país?

O arquétipo dominante não permanece da mesma forma para sempre, assim como é evidente a partir das limitações temporais que têm sido ajustadas conforme o tão desejado reino de paz, o "Reich de mil anos". O arquétipo do pai dos justos mediterrâneo, amante de ordens e legislador benevolente, tem sido destruído por todo norte europeu, assim como o presente destino aos quais as igrejas cristãs têm sido submetidas. O fascismo na Itália e a guerra civil na Espanha mostram que, no sul, o cataclisma tem sido de longe maior do que se esperava. Mesmo a igreja católica não pode mais suportar tentativas de força.

O deus nacionalista atacou o cristianismo em um amplo front. Na Rússia, ele é chamado tecnologia e ciência, na Itália, Duce, e na Alemanha, "Fé alemã", "Cristianismo alemão", ou Estado. Os "cristãos alemães" são uma contradição em termos e fariam melhor se se juntassem ao "Movimento da Fé Alemã", de Hauer. Essas são pessoas decentes e bem-intencionadas, as quais sinceramente admitem seu Ergriffenheit e tentam vir a termos com esse novo e inegável fato. Eles fazem com queum enorme monte de problemas pareça menos alarmante ao vesti-lo em um traje histórico conciliatório e nos dando amostras de consolo com grandes figuras como Meister Eckhart, que era também alemão e também Ergriffen. Dessa forma, a estranha questão de quem é o Ergreifer é contornada. Ele sempre foi "Deus". Mas quanto mais Hauer restringe a esfera mundial de uma cultura indo-européia à "nórdica" em geral e para o Edda, em particular, e quanto mais "alemã" essa fé se torna como uma manifestação de Ergrifenheit, mais dolorosamente evidente é que o deus "alemão" é o deus dos alemães.

Não podemos ler o livro de Hauer sem emoção, considerando-se que o esforço trágico e heróico de um consciente estudioso que, sem saber como isso aconteceu a ele, foi violentamente convocado pela voz inaudível do Ergreifer e agora está tentando com toda sua força e com todo seu conhecimento e habilidade construir a ponte entre as obscuras forças da vida e o brilhante mundo das idéias históricas. Mas o que acontece a todas as belezas do passado, em diferentes níveis de significado cultural ao homem contemporâneo, quando confrontadas com um deus tribal vivo e insondável como nunca experimentou antes? Elas são sugadas como folhas secas no ruidoso vento e as aliterações ritmicas do Edda se tornam inextricavelmente misturadas com textos místicos cristãos, poesia alemã e o conhecimento dos Upanishads.

Hauer por ele mesmo é ergriffen à profundidade do significado nas palavras primitivas presentes nas raízes das linguagens germânicas, à extensão de que ele certamente nunca soube. Hauer, o indologista, não é culpado por isso, nem ainda os Edda; é mais culpa do kairos - o momento presente no tempo - cujo nome conforme investigação mais detalhada acaba chegando ao Wotan. Eu iria, portanto, aconselhar o Movimento da Fé Alemã a deixar de lado seus escrúpulos. Pessoas inteligentes não irão confundi-los com os brutos adoradores de Wotan, cuja fé é uma mera pretensão. Há pessoas no Movimento da Fé Alemã que são suficientemente inteligentes para simplesmente não acreditar, mas saber, que o deus dos alemães é Wotan e não o deus cristão. Isso é uma experiência trágica e não uma desgraça. Sempre foi terrível cair nas mãos de um deus vivo. Yahweh não foi uma excessão a essa regra, e os philistines, edomites, amorites e o resto que estavam por fora da experiência de Yahweh devem certamente ter achado isso tudo extremamente desagradável. Nós, que permanecemos alheios, julgamos os alemães de muito longe, assim como se nós fossemos agentes responsáveis, mas talvez isso seria a mais coerente verdade ao considerá-los também vítimas.

Se nós aplicarmos esse peculiar ponto de vista consistentemente, seremos levados à conclusão de que Wotan deve, em tempo, revelar não apenas o incansável, violento e tempestuoso lado de sua personalidade, mas também suas extálticas e mânticas qualidades - um aspecto muito diferente de sua natureza. Se essa conclusão estiver correta, o Nacional Socialismo não será a última palavra. As coisas devem estar escondidas no fundo e nós não podemos imaginar no presente, mas nós iremos esperar que elas apareçam no curso dos próximos anos ou décadas. O redespertar de Wotan é um passo de volta ao passado; a corrente foi amaldiçoada e se quebrou em seu canal antigo. Mas a Obstrução não irá durar para sempre; é mais um reculer pour mieux sauter e a água irá saltar por cima do obstáculo. Então, por fim, nós iremos saber o que Wotan está dizendo quando ele "murmura com a cabeça de Mirmir".


Mimir significa "o sábio" ou "aquele que lembra". Ele era reconhecido por seu conhecimento e sabedoria. Ele foi decapitado durante a guerra de Aesir e Vanir. Depois da guerra, sua cabeça foi mandada a Odin como um símbolo de desgosto e frustração. O deus Odin sempre a carrega, porque ela lhe dá conselhos. Mimir tinha um poço chamado "O poço de Mimir", do qual aqueles que bebessem iriam adquirir mais sabedoria. Fonte

Rápidos movem os filhos de Mim, o destino
É ouvido na nota do Gjallarhorn;
Alto assovia Heimdall, a corneta está erguida,
Em medo treme todos que estão nas estradas de Hel.
Yggdrasil sacode e oscila ao alto
Os membros antigos, e o gigante está solto;
Wotan murmura com a cabeça de Mimir
Mas o parente de Surt deve escravizá-lo logo.

Como cobrar os deuses? Como cobrar os elfos?
Todos os gemidos de Jotunheim, os deuses estão no concílio;
Alto rugem os anões às portas de pedra,
Os mestres das rochas: você os conhecerá ainda mais?

Agora Garm uiva alto diante de Gnipahellir;
As penas irão tremer, e o lobo corre livre;
Muito eu sei, e mais posso ver
Do destino dos deuses, os fortes na luta.

Do leste vem Hrym com o escudo erguido;
A ira gigante faz a serpente contorcer;
Sobre as ondas ele balança, e a amarelada águia
Grita cadáveres corroídos; Naglfar está solto.

Sobre o mar do norte onde navega um navio
Com as pessoas de Hel, no leme permanece Loki;
Depois que o lobo segue homens selvagens,
E com eles o irmão de Byleist vai.

2 comentários:

  1. Lidia, peço perdão, mas não vim postar para comentar sobre essa entrada no blog (embora deva dizer que esta magnífica). Conheci o blog hoje mesmo enquanto procurava no Google pelas palavras "Música Industrial Brasil" e encontrei o blog, e que surpresa que tive ao ver o trabalho de TCC e o outro, em andamento. Gostaria de perguntar se teria como enviar para mim por email os seus artigos e TCCs, dada que as suas temáticas em muito me interessam. Como não encontrei nenhum email para entrar em contato, optei por iniciar meu pedido por aqui.

    Agradeço pela compreensão,

    F.P

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    1. Oi, Don Polonia. Obrigada por comentar! Fico feliz que tenha se interessado pelo meu blog e meus trabalhos. Você pode lê-los aqui mesmo, nas abas "Kunst ist Krieg" e "Murmúrio dos Inocentes", nos quais estão inseridos respectivamente minha monografia e o pré-projeto da minha dissertação (ambos em Scribd).

      Os artigos ainda estão em processo de publicação, já que os dois livros estão sendo editados - um deles sairá em papel e outro acredito que seja em e-book, sendo o primeiro em português e o segundo em inglês. Assim que eles estiverem disponíveis, deixo avisado aqui no blog!

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