terça-feira, 25 de março de 2014

As vacas de Vilém Flusser

Ainda lendo Natural:mente (2011, Annablume), eu me deparei com um capítulo que, por um momento, achei não ter pé nem cabeça - aliás, muitos deles começam assim, com divagações malucas e que você tenta adivinhar onde o autor está tentando chegar. Um deles é "Vacas". Flusser começa comparando o mamífero a máquinas eficientes que são capazes de transformar erva em leite, são máquinas reprodutíveis e, até aquele momento em que ele escrevia, sequer eram capazes de poluir o ambiente - mas hoje já ouvimos dizer que suas fezes contribuem com o aquecimento global por conta do gás metano eliminado. 

Além disso, vacas são até simples de serem manejadas, não chegam a ser custosas (a não ser quando adoecem e aí precisam de um profissional do tipo veterinário). São versáteis e possibilitam até mesmo a geração de energia e servem de motor para veículos lentos. Estão disponíveis em diferentes modelos no mercado, do tipo vaca suíça, holandesa e inglesa, até os estereótipos mais baratos e "destinados aos povos subdesenvolvidos" (p.67) como as zebu e vacas centro-africanas. Mas não se trata bem de estética e sim um "modo de usar" da vaca, sendo possível até mesmo que essa característica se torne um jogo para seus criadores, que cruzam as raças e tornam a venda e a compra um processo lúdico - vide Canal do Boi.

Mas assim como quem lê Vampyroteuthis infernalis (2011, Annablume) e pensa que Flusser está falando do molusco per se, está novamente enganado que a vaca é só vaca em seu texto, como ele já anuncia no pequeno capítulo, facilitando nossa compreensão: "O inventor da vaca provocou autêntica revolução tecnlógica, tanto em sentido funcional quanto estético, que abre horizontes para  um novo 'estar-no-mundo' do homem do futuro" (p.67).

Do mesmo modo que a vaca é decolagem, é também perigo para Flusser. Outras máquinas virão a povoar a vivência humana, como já vêm fazendo desde a Revolução Industrial, e serão aos poucos substituídas por máquinas do tipo "vaca". E essas máquinas são capazes de impor um novo ritmo vital e uma nova práxis ao homem, pedindo-lhe uma readaptação que, por consequência, gera uma "nova alienação individual e coletiva" (p.68).

"A fantasia pode prever não apenas dissolução das grandes cidades e formação de pequenos aglomerados em torno de vacas (a serem chamadas, por exemplo, 'aldeias'), mas em consequência disto, também, a dissolução da estrutura básica da sociedade e sua substituição por outra apenas imaginável. No entanto, o pior não será isto" (p.68)

Se é possível reconhecer a tendência dos humanos em criar máquinas que "espelham" no homem, isto é, o tear como modelo do dedo humano, o telégrafo como modelo do nervo, também conseguimos vislumbrar que para o homem do século 18, a tecnologia era a vapor, enquanto no século 19 era química e no século 20 passa a ser cibernética. "Tal retroalimentação nefasta entre o homem e seus produtos é aspecto importante da alienação e autoalienação humana" (p.69). Quanto mais as máquinas atuais vão sendo substituídas por máquinas do tipo "vaca", Flusser vê por consequência a equação e identificação "homem = vaca".

"O homem pode não reconhecer na vaca o seu próprio projeto, pode esquecer que a vaca é resultado de sua própria manipulação da realidade em obediência a um modelo seu, e aceitar a vaca como algo de alguma forma 'dado' (por exemplo: pode aceitar a vaca como uma espécie de 'animal', portanto, prate da 'natureza'). Em tal caso, a vaca assumirá autonomia ontológica e epistemológica, e virará, por assim dizer por trás das costas do homem, modelo do próprio homem" (p.69)

Por ser extremamente antropomórfica, uma vez que segue como referência o próprio homem (vide exemplo do tear e do telégrafo), é possível que a natureza maquínica da vaca seja muitas vezes encoberta e não haverá "explicações genéticas" que "provarão ser a vaca resultado de manipulação humana" (p.69) - vide Teste de Turing. Isso porque "o impacto da vaca se dará em nível existencial, no contato diário com ela. Em tal nível, todas as 'explicações' se tornaram irrelevantes (como são irrelevantes tais 'explicações' atualmente para os que têm contato diário com computadores)" (Idem).

"A mera presença cotidiana da vaca exercerá sua influência 'vaquificante'. A fantasia se recusa a imaginar a consequência disso.
No entanto, é preciso enfrentar o perigo. A fantasia deve ser forçada. Revela a visão de uma humanidade que pastará e ruminará satisfeita e inconsciente, consumindo erva, na qual uma elite invisível de 'pastores' tem interesse investido, e produzindo o leite para tal elite. Tal humanidade será manipulada pela elite de maneira tão sutil e perfeita que se tomará por livre. Isto será possível graças à automaticidade do funcionamento da vaca. A liberdade ilusória encobrirá a manipulação 'pastoril' perfeitamente. A vida se resumirá às funções típicas da vaca: nascimento, consumo, ruminação, produção, lazer, reprodução e morte. Visão paradisíaca e terrificante. Quem sabe, ao contemplarmos a vaca, estamos contemplando o homem do futuro?" (p.70)

A fantasia que Flusser menciona certamente é a ficção científica, principalmente a de gênero distópico. E depois de ler esse parágrafo, não conseguia deixar de pensar em Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley e a "erva" Soma. O mais curioso é que, como já citei aqui em outro post, de outra natureza, há mesmo uma música de um compositor brasileiro que faz uma paródia sobre vacas e essa distopia: Zé Ramalho, com Admirável Gado Novo.

Vocês que fazem parte dessa massa
Que passa nos projetos do futuro
É duro tanto ter que caminhar
E dar muito mais do que receber...
E ter que demonstrar sua coragem
À margem do que possa parecer
E ver que toda essa engrenagem
Já sente a ferrugem lhe comer...

De mesmo modo, acredito que Flusser ainda toque no ponto da ficção científica (mesmo que estejamos, talvez, próximos de tornar realidade) dos autômatos, máquinas cibernéticas que emulam o homem também e a consequência da convivência com os mesmos, num nível existencial, sociológico, filosófico. Mas o autor vai além da máquina e pensa o homem como máquina, como gado, funcionário preso ao programa da vida de vaca. Mas, assim como em Filosofia da caixa preta (2011, Annablume), Flusser também sugere uma "filosofia da fotografia", isto é, que é possível não cair nessa armadilha.

"O futuro é, no entanto, apenas virtualidade. Ainda é tempo de agirmos. O progresso não é automático, mas resultante de vontades e liberdades humanas. O progresso rumo à vaca pode ser ainda sustado. Não, por certo, 'reacionariamente'. Não pela tentativa de negar as fantagens óbvias da vaca e a força da imaginação criativa que nela se manifesta. Mas pela tentativa de apropriar a vaca às verdadeiras necessidades e aos verdadeiros ideais humanos. A vaca é, sem dúvida, ameaça. Mas também desafio. Deve ser enfrentada" (p.70).

Portanto, diferente das tantas fantasias (ficções científicas) que têm transbordado nas telas e nas prateleiras, em que robôs são tanto achatados à amizade das leis de Asimov quanto à demonização dos neoluditas, Flusser pede para que pensamos nas possibilidades e nos riscos da "vaca" e não deixa de considerar a narrativa fantástica, a meu ver, como um local de pensamento sobre esses assuntos - ainda que não esteja contente com o que conhecia do gênero.

Ainda gostaria muito de ler o texto Science Fiction que Vilém Flusser escreveu e agora com a vinda da biblioteca dele para o Brasil, espero conseguir ter acesso a esse documento. Fiquei sabendo da existência a partir do livro O Explorador de Abismos, de Erick Felinto e Lúcia Santaella, no qual os autores abordam justamente Flusser, pós-humanismo e ficção científica. Lá, inclusive, os autores consideram que o cyberpunk estaria entre alguns dos gêneros mais interessante para essa reflexão, ao citar um trecho do livro A cultura da Mídia de Douglas Kellner:

"[o cyberpunk propõe] profundas questões filosóficas sobre a natureza da realidade, da subjetividade e do ser humano no mundo da tecnologia: o que é autenticamente humano quando se tornam idenfinidas as fronteiras entre humanidade e tecnologia? O que é identidade humana, se ela for programável? O que sobra nas noções de autenticidade e identidade numa implosão programada entre tecnologia e ser humano? O que é 'realidade', se ela é capaz de tanta simulação? De que modo a realidade está hoje sendo corroída, e quais são as consequências disso? Certamente, Gibson não responde a essas perguntas, mas pelo menos suas obras as formulam e nos obrigam a pensar sobre elas" (p.33)

Esperamos, então, que o cyberpunk e os próximos autores continuem pensando sobre isso. Eu sigo arriscando com as minhas noveletas REQU13M do gênero e procurarei estudar sobre esses assuntos no doutorado, inclusive, mas ainda aguardo filmes e livros alheios que tenham uma abordagem que cheguem a responder tais perguntas.

segunda-feira, 17 de março de 2014

Natural:mente - Vales, Vilém Flusser

Há alguns dias comecei a leitura do livro Natural:mente (2011), de Vilém Flusser. Publicada pela editora Annablume, a obra é dividida em capítulos que falam sobre diversos assuntos misteriosos até que você pare para ler a respeito, mas aparentemente é possível ler tudo sem precisar ser na ordem. Com subtítulo "Vários acessos ao significado de natureza", o livro gira em torno do mote "natural mente", como o prefácio de Gustavo Bernardo antecipa. E o primeiro capítulo também trata sobre isso, "Caminhos", ao tratar sobre as diferenças e proximidades entre natureza e cultura quando Flusser fala sobre o Passo de Fuorn, Carnac, a Transamazônica e o Eixo Monumental. Mas esse trecho não me chamou muito a atenção quanto o capítulo seguinte, intitulado Vales, quando o autor inicia falando sobre mapas e perspectivas, iniciando-se com uma linguagem poética ao narrar e descrever a paisagem e a composição mesmo social dos vales.

Não surpreendentemente: as "humanidades" têm mapas contrários aos da "ciências da natureza". O tempo corre em direção oposta nas duas disciplinas. Nas ciências da natureza corre rumo à entropia; nas humanidades, rumo à informação crescente. A água corre em direção oposta à do rio da humanidade. A estratificação histórica do meu vale se opõe à sua estratificação geológica, como o "espírito" se opõe ao mundo. Porque o mundo é passagem, e o "espírito" é aventura. (p.34)

Se nas planícies é onde vivem os engenheiros, os homens das ciências da natureza, é nos vales que vivem os homens tais como o autor - os homens das "humanidades". É nesse lugar onde ficam as tradições e a memória, "no sentido platônico, biológico, psicológico, cibernético (e talvez outro). Vales, no meu mapa, são armazéns da informação. Conservadores tradicionais, portanto. No meu mapa, o progresso corre morro acima para ser armazenado nos vales mais estreitos" (p.35). Mas os vales são orgânicos e articulados, não recebem qualquer tipo de informação, do tipo de "massa", "portanto, o progresso massificador da planície se destina a ser articulado ("humanizado") nos vales" (p.36).

Vales abrigam fauna e flora com sua própria economia e estrutura social, arquitetura, música e lendas. Vales não comunicam entre si, mas apenas com a planície. Vales são "os lugares nos quais os discursos da planície são dialogados. Por isso, vales são os lugares de pensadores e poetas. Desde Heráclito até Nietzsche. Desde Davi até Rilke. Mas não para profetas. Profetas não habitam vales" (p.37).

Os profetas passam pelo vale e o usam como canal comunicador até o cume da montanha. De lá, retornam para a planície, onde contam a "nova", a visão que tiveram do cume. O vale, desse modo, é canal bivalente, de ida e volta, sendo primeiro uma passagem entre a alienação massificada e a solidão e por último entre a solidão e o engajamento. O vale, portanto, torna-se o caminho do profeta. 

 Sobre esse trânsito no vale, Flusser escreve:
Quem jamais subiu pelo vale, jamais viveu. Vegeta no plano. A terceira dimensão, a do sublime, lhe falta. Mas quem subiu pelo vale e lá ficou, tampouco viveu. Arrancou suas raízes, é verdade, desalienou-se. Mas ficou no ar, na disponibilidade. Deve decidir-se. Subir mais ainda, ilosar-se mais ainda naqueles cumes que Rilke chamou "os do coração", os quais nem sequer águias habitam. arriscar-se À solidão da qual Unamuno diz que nela "perdeu a sua verdade". E em tal decisão não pode esperar por nenhum Virgílio, ou Godot, ou não importa que guia alpinista. Ou então voltar à planície sem ter corrido o risco da subida, não, por certo, para reintegrar-se, mas para engajar-se. Porque, para quem está no vale, a integração se tornou impossível. É para ele, doravante, sinônimo de promiscuidade. Por ter subido o vale, é apocalíptico, e jamais poderá voltar a ser integrado. A "volta" jamais pode ser cancelamento da "ida". Quem volta não é o mesmo, é alterado. Ficou informado, mesmo se não subiu até o cume. Eis a decisão que deve tomar quem subiu pelo vale: solidão sem garantia de volta, ou volta sem ter visto o cume. (p.38)
Ainda, quem já nasceu no vale, nem por isso está numa posição melhor, porque daquela posição vê a bruma e não enxerga que abaixo de si ainda há a planície e, por isso, acreditam que nasceram em cima das nuvens. De mesmo modo acontece com os que nasceram na planície e nunca subiram para o vale, acreditando que a bruma é o céu.

Vales, portanto, são caminhos da decisão, lugares concretos. "Lugares, nos quais se torna necessário, em dado momento, jogar fora todos os mapas, sob pena de se pairar no 'sobrenatural', no 'teórico', na 'perspectiva'" (p.40).

quinta-feira, 13 de março de 2014

Em nova obra, Helnwein pinta retrato de sua neta Croí

Head of a Child 16 (Croí), 2014. Tinta a óleo e acrílica sobre tela. 169cm x 269,5cm

Croí Sequoia Helnwein é a nova modelo de Helnwein em sua mais recente obra, que acrescenta o 16º quadro na série Head of a Child. No começo de sua carreira, o artista costumava trabalhar com seus próprios filhos, como por exemplo Mercedes, Cyril e Ali, que eram um dos principais modelos em suas fotografias, pinturas e ações.

Self-portrait with Ali and Cyril (1983), fotografia

Oregon (1983)

Sol Niger II (1987)

"No passado, eu trabalhava com os meus filhos. Especialmente com meu filho Ali. Meu modelo preferido. Ele era excelente, até mesmo se parecia um pouco com uma garota - tinha cabelos longos. Ele era muito paciente e tinha uma expressão incrível. Mas ele ficou logo entediado, quis dinheiro. Então eu tive que pagá-lo 5 marcos por sessão, o que eu fiz com satisfação, claro. É por isso que ele aparece em tantas pinturas minhas. Meus próprios filhos serviram como modelos no começo, mas quando eles cresceram, tive que sair procurando por outros modelos".
(The Silence of Innocence. Claudia Schmid. 2006. Documentário)

domingo, 9 de março de 2014

Infográfico mostra qual ditador matou mais

O site Memolition publicou um infográfico comparando qual ditador ao longo da história matou mais pessoas durante seu governo. Comparativamente, Mao Zedong foi o que mais assassinou pessoas, liderando a tabela com 78 milhões mortes. No entanto, o impacto na sociedade, na memória histórica e no inconsciente coletivo também fica associado apenas aos números? É algo a se pensar.


terça-feira, 4 de março de 2014

Obras menos conhecidas de Helnwein

Existem algumas pinturas e fotografias de Helnwein que sequer aparecem listadas em seu próprio site, talvez por terem sido compradas por colecionadores antes mesmo de ele poder catalogá-las ou sabe-se lá o motivo. O caso é que elas poucas vezes são lembradas em contraste a outras que são bem mais conhecidas, como aquelas das séries mais recentes, The Murmur of the Innocents e The Disasters of War, bem como as fotografias feitas com Marilyn Manson. No entanto, sua obra mais antiga, no que diz respeito às aquarelas, bem como as imagens a seguir, dizem muito a um lado bem agressivo e que se relacionam a essa "primeira era" do artista, se é que dá para usar esse termo para fazer referência aos seus trabalhos dos anos 70 e 80.

Kiss I (1998), tinta a óleo e acrílica sobre tela, 160 cm x 106 cm

Kiss II (1998), tinta a óleo e acrílica sobre tela, 160 cm x 106 cm

Kiss III (1998)

Untitled (1998)

Untitled (1998), tinta a óleo e acrílica sobre tela, 160 cm x 106 cm

Lest you forget (1995), tinta a óleo e acrílica sobre tela, 153 cm x 380 cm

Ascension (1995), tinta a óleo e acrílica sobre tela, 212 cm x 141 cm

 The Child Dreams 6 (2011), tinta a óleo e acrílica sobre tela, 240 cm x 437 cm

Untitled (1998), tinta a óleo e acrílica sobre tela

Untitled (1998), tinta a óleo e acrílica sobre tela

Pieta Lutz (1996), tinta a óleo e acrílica sobre tela

Proof of evolution (1993), aquarela, lápis de cor e lápis em cartolina

Boys (1993), lápis de cor em papel, 63 cm x 89 cm

The Meeting (1996), tinta a óleo e acrílica sobre tela, 220 cm x 300 cm

Untitled (1996), tinta a óleo e acrílica sobre tela

Alba (2012), tinta a óleo e acrílica sobre tela, 50" X 72"

Untitled (1997), tinta a óleo e acrílica sobre tela, 120 cm x 180 cm

Untitled (1996)

Untitled (Head of a Child) (1998)

segunda-feira, 3 de março de 2014

Laibach lança novo álbum, Spectre, e clipe The Whistleblowers


Dirigido pelo artista norueguês Morten Traavik, o vídeo foi filmado em Riga, na Letônia, usando lentes LOMO da era soviética. Segundo o diretor, as lentes são responsáveis por criar a textura vista no clipe e um efeito widescreen tão amplo, assim como se a tela se dividesse como uma bandeira de três faixas, com o vídeo sendo a do meio.

Para comprar o álbum Spectre, acesse o link. Ouça o stream no site The Quietus.


domingo, 2 de março de 2014

Fotografia de Helnwein em um restaurante de Viena

The Golden Age 1 (Marilyn Manson) (2003), fotografia

O músico LOCO DICE postou essa foto no Facebook e Helnwein a compartilhou em sua página. Aparentemente a foto foi dependurada no restaurante e clube noturno Grelle Forelle, como indicam as hashtags. Próxima refeição em Viena, já sabem onde fazer, né? :)