segunda-feira, 25 de junho de 2012

Vampyroteuthis infernalis: irracionalidade e razão

Como combinado, fiquei de escrever um texto sobre o livro Vampyroteuthis infernalis, de Vilém Flusser. É uma das principais fontes que usarei na minha dissertação, já que o autor é base de várias das minhas hipóteses. 

No caso, o texto se refere principalmente ao último capítulo do livro, lançado em 2011 pela editora Annablume. Esse trecho, no fim das contas, acaba sintetizando boa parte das idéias discutidas ao longo da obra, mas ressalto aqui a questão da irracionalidade e do sombrio, das emoções violentas que o Vampyroteuthis representa na fábula de Flusser, a partir da minha leitura.

Tentei tornar compreensível mesmo a quem não leu o livro, mas não sei se consegui fazer isso.



O molusco que há em nós


Vampyroteuthis infernalis (2011, Annablume), de Vilém Flusser, é uma fábula na qual o pensador tcheco-brasileiro usa como personagem principal um molusco que vive em águas abissais e dá nome à obra. Este é analisado em suas propriedades fisiológicas durante boa parte das 160 páginas, que ainda contam com ilustrações feitas pelo biólogo francês Louis Bec, amigo de Flusser. Apesar de, à época do lançamento, a leitura ter provocado confusão entre o que seria real e fictício, entende-se que Flusser fala sobre o ser humano, usando o animal como uma alegoria a suas reflexões existencialistas.

O último capítulo, “A emergência do Vampyroteuthis”, sintetiza as principais considerações feitas pelo autor, que usa o molusco ora como uma representação das relações de alteridade, ora como referência às qualidades humanas. Isto é, o próprio nome do animal traz a ideia de algo profano e sombrio ao unir a figura fantástica e aterrorizante do vampiro ao atributo infernal que lhe convém. Com isso, Flusser encontra no tenebroso aspecto da criatura marinha uma outra faceta do ser humano, tão recalcada quanto a “besta” que se esconde nas profundezas do oceano, sob altíssimas pressão e temperatura.

Ainda que nós vivamos na superfície, em condições atmosféricas quase opostas às do habitat do Vampyroteuthis, há muito em comum entre as duas espécies. Um dos pontos de encontro aparece junto à prática da pesquisa e exploração. Flusser indica que, independentemente da área pela qual se siga uma investigação, inevitavelmente nos deparamos com a figura do molusco ao mesmo tempo que com a nossa própria. O motivo é que o Vampyroteuthis “habita todas as nossas profundidades, e nós o habitamos” (p.126)¹. Assim, “este encontro de si próprio no outro extremo do mundo é o derradeiro propósito de todas as explorações humanas. Porque, ‘no fundo’, o único tema do homem é o homem” (Idem).

Flusser, então, parece dizer que, no fim das contas, estamos sempre falando de nós mesmos, humanos, independentemente do que estejamos estudando. Este é o nosso ponto de partida e disto não conseguimos fugir, porque não somos capazes de pensar senão pela linha de raciocínio própria ao homem e, portanto, encontramo-nos em tudo, junto à imagem do Vampyroteuthis. Mas mais do que vislumbrar tal tendência como uma limitação de nossa espécie é entender que isso ocorre porque, justamente, o mundo interior ao humano se reflete numa “simetria de espelhos contrapostos” com o mundo exterior. E isso acontece pelo “estar-no-mundo humano. O homem se reflete no mundo, e o mundo, no homem, e este vai-vem de contraposições refletidas é a própria realidade humana” (p.126). Ou seja, os abismos das paisagens geográficas se conjecturam com os abismos interiores a nós: “os abismos refletem o explorador e o explorador os abismos” (Idem).

Montagem compara o neurônio com a simulação de um mapa do universo, o nascimento de uma célula com a morte de uma estrela e o olho humano a uma nebulosa

Se outrora as explorações visavam à busca pela pedra da sabedoria, hoje, Flusser arrisca, procuramos os limites do humanamente possível. E, nessa empreitada, afinal, sempre nos esbarramos com o Vampyroteuthis – o que não é um defeito, mas uma prova de que estamos avançando. O autor lista alguns exemplos desse encontro, levando-se em conta a teologia, cibernética, análise lógica e psicossociologia, áreas nas quais tal evento se desemboca, respectivamente, na “morte de Deus”, no pensamento programado, no cálculo proposicional e no romantismo assassino do “nazismo”. Isto é, à medida que avançamos e mergulhamos nos abismos do conhecimento (porque ele é profundo, obscuro e infinito tal qual o acidente geográfico), defrontamo-nos com a figura assustadora e terrível do Vampyroteuthis, que nos abraça e nos suga com seus tentáculos. Em consequência, nós nos perdemos nele: deixamo-nos seduzir e caímos em sua tentadora armadilha da irracionalidade.

Uma analogia desse fenômeno descrito metaforicamente por Flusser poderia ser feita conforme o filme Pi (1998), de Darren Aronofsky. Nessa obra, Max, interpretado por Sean Gullette, é um matemático que resolve estudar os padrões no mundo, reconhecendo que certas expressões numéricas se dão de forma constante, como a espiral áurea. Isto é, o personagem tenta racionalizar tudo que há na vida, entendendo que ela pode ser explicada a partir da matemática. Por outro lado, ele reconhece que há eventos que não são padronizados, como as cotações da bolsa de valores e o próprio número Pi.

Ao longo do enredo, Max se envolve numa fixação por descobrir os padrões dessas duas exceções, a ponto de ficar enlouquecido e cair nos abismos de sua própria mente – tanto que ele tem surtos frequentes, nos quais desmaia ou infringe o próprio corpo. Enquanto tenta desvendar tal problema, o protagonista ainda é abordado por um membro da Kabbalah, que enxerga em suas pesquisas uma congruência com um dos mistérios de sua seita. Ao mesmo tempo em que o matemático encontra uma certa sequêcia de números composta por 216 dígitos, ele também é alertado de que, segundo a Kabbalah, Deus tem um nome secreto que possui 216 letras – lembrando que cada letra no alfabeto hebraico rege um valor numérico e simbologia. E esse número, inclusive, é o qual agentes da bolsa querem roubar do personagem, para poder lucrar nas transações. É racional e irracional.

Uma das cenas de Pi (1998), na qual o protagonista machuca a si mesmo depois de um período de surto diante de seus estudos

Isto é, independentemente se seguimos explorando pelo caminho da matemática ou da religião, acabamos caindo nesse caos que Flusser chama de trajeto que não vai “‘até as mães’, mas é viagem de Alice ao país das maravilhas, viagem através dos espelhos” (p.127). E é nesse momento em que perdemos a sobriedade e nos deixamos ser envolvidos pelos tentáculos do Vampyroteuthis, que nos fascinamos pelas trevas, perdemos nosso controle e desvirtuamos nosso equilíbrio entre o racional e irracional.

Flusser explica tal fenômeno à metáfora da emergência do Vampyroteuthis, que explode ao se deslocar de seu nicho, em condições atmosféricas propícias a sua existência, para a superfície onde nos encontramos. Se levarmos em conta que o molusco é, nesta obra, uma alegoria do lado sombrio e da irracionalidade humana, o Id de Freud e a sombra de Jung, entendemos porque Flusser diz que o encontro com a criatura se dá em forma de morte de Deus, pensamento programado, nazismo etc. É porque, uma vez que o alcançamos, finalmente o libertamos de sua pressão física, que é nosso recalque moral. E evidenciamos que, afinal, o problema não está no bicho, mas nas forças que o mantêm aprisionado aos abismos da Terra, que são também os nossos.

No livro, o autor aponta que o Iluminismo tentou domesticar o Vampyroteuthis. Levando-se em conta que o movimento defendia a razão acima de todas as coisas, é natural que o molusco tenha se tornado um inimigo a ser conquistado, educado. Assim, por meio da ciência, as trevas da fé seriam eliminadas e o homem se fundamentaria como um ser uno em racionalidade. Pensou-se que “bastaria descomprimir o Vampyroteuthis para torná-lo inócuo e ‘civilizado’” (p.128), subindo-o pouco a pouco, habituando-o às “condições atmosféricas reinantes na esfera da luz diurna” (Idem) – Flusser, nesta citação, aproveita-se da alegoria de iluminação através da ciência e técnica que, justamente, dá nome ao movimento. Mas, no fim das contas, essa tentativa é falha: “o Vampyroteuthis não é educável e humanizável. Que, malgrado toda tolerância, é intolerável” (Ibidem). Mesmo porque, apesar de a ciência tentar se manter isenta de irracionalidade, muito dela mesma é “contaminada” por aquilo que iluministas, positivistas e ateus repudiam: até hoje, encontramos gnose entremeada à tecnologia, como denuncia, por exemplo, Erick Felinto em A religião das máquinas (Editora Sulina, 2005).

No entanto, vale lembrar também que as forças que atuam sobre o recalque do Vampyroteuthis não são mantidas pelos humanos, mas essa mesma pressão é a que faz com que o homem boie e o molusco permaneça no fundo. Se esse equilíbrio for desfeito, o molusco emerge e o homem afunda, sendo que tal troca não se dá senão como a perda total de ambos. E as consequências disso são:

“Se os teólogos elevam o inferno até o céu, é que estão infernalizando o céu. Se os cibernéticos deliberam a programação, é que estão programando a deliberação. Se os lógicos formalizam o pensamento, é que passam a pensar formas. Se os nazistas libertam a voz do sangue, é que estão sufocando em sangue a liberdade. O Vampyroteuthis não pode ser levado até a clara luz do dia: já que, ao aparecer, surge com ele a paixão resplandecente da noite” (FLUSSER, 2011, p.129).
           
Ou seja, o encontro entre homem e Vampyroteuthis é um evento perigoso, porque muitas vezes sua síntese se dá em um híbrido no qual se liberta o Vampyroteuthis no homem e o homem no Vampyroteuthis. Elimina-se um ou outro, mas dificilmente os dois se somam e se equilibram. Por isso, ao descobrir o molusco, muitas vezes caímos na tentação de assumir o mal para transformá-lo em bem ou assumimos o mal e o direito de sê-lo, bem como elevamos o inferno ao céu ou romantizamos o inferno. Esses resultados são consequência da atitude de se querer salvar a “vampyroteuthidade humana”, sobrepondo-a à “humanidade humana”.
E isso acontece porque é muito fácil se deixar levar pelos encantos das sombras e das emoções violentas do Vampyroteuthis, quando, na verdade, deveríamos buscar realizar, em nossas expedições, “um feito acrobático de equilíbrio entre a insistência no intelecto e a entrega à emotividade” (p.130). Para tal, o explorador deve tanto pensar em prol da humanidade, seja pela faceta crítica e desperta ou por sua profundidade emotiva, onírica e vertiginosa. Isto é, ao nos encontrarmos com o Vampyroteuthis, devemos entendê-lo “não apenas como núcleo do lado emotivo no homem, mas igualmente como sustentáculo do lado intelectual” (Idem), já que a sugestão de Flusser é que nós não ajamos a partir da lógica de exclusão ou inclusão, mas que façamos um amálgama das qualidades vampyroteuthicas e da racionalidade. Dessa forma, o Vampyroteuthis poderá emergir sem explodir e o homem poderá assumi-lo sem ser achatado e dominado por ele.
Para ilustrar essas duas forças, entre o irracional e o racional, Flusser faz uma outra alegoria, remetendo à mitologia grega das ninfas transformadas em monstros marinhos: Cila e Caribde representam, respectivamente, no livro, o tipo científico de expedição e o tipo “confessional”. O ponto de encontro com o mito se dá quando estas criaturas são conhecidas por aparecer aos navegantes, alertando os perigos de sua empreitada, sendo que Caribde é a única que permanece escondida – recalcada ao abismo.
É dito que Ulisses, antes de seguir sua travessia pelo mar, é avisado por Circe sobre os monstros Cila e Caribde. A primeira, dotada de seis cabeças, encontrava-se numa caverna no alto de um rochedo, atirando seus longos pescoços para abocanhar os marinheiros de quaisquer navegações que passassem a sua proximidade. Caribde, no entanto, aparecia na forma de sorvedouro quase ao nível da água, o qual engolia todo e qualquer barco que por ali passasse. Assim, as duas criaturas se tornaram provérbios que indicam “perigos opostos, no caminho de alguém” (BULFINCH, 2006, p.236). Ou seja, tanto a irracionalidade quanto a racionalidade podem aparecer numa pesquisa (trajetória, reflexão) como obstáculos devoradores, caso estes não sejam manejáveis, equilibrados: a ciência pode devorar, a emoção pode engolir.
Portanto, à medida que a ciência pretende obstinada e cegamente atuar apenas a partir da objetividade e da racionalidade, ela acaba “assassinando o Vampyroteuthis”, que no livro de Flusser representa o oposto. Dessa forma, o molusco é reduzido a sua simples condição de bicho, castrando a oportunidade de se apropriar de suas características científicas para, então, apresentá-lo em forma de fábula. Isto é, é preciso sempre dosar: tal método deve “recorrer às redes das ciências, que são os únicos órgãos dos quais dispomos atualmente para orientarmo-nos nas profundezas” (p.131) e também fazer com que tais fábulas não sejam ficções científicas, mas “científicas a serviço de pesadelos e sonhos. Devem ser ‘ciências fictícias’, isto é: superações da objetividade científica a serviço de um conhecimento concretamente humano” (Idem). Daí podemos concluir que Flusser propõe o retorno à filosofia, que não se alicerçava apenas na metafísica, mas também nas ciências naturais, como nos primórdios da corrente grega.
E essa superação deve ocorrer porque o homem, assunto central a nossa espécie, é animal das profundezas que o Vampyroteuthis o habita. Porém, a biologia, entendida como ciência a serviço apenas da racionalidade, acaba dissolvendo as virtualidades existentes no molusco. No livro, Flusser fala sobre uma célula original que funcionaria como ponto de fuga para o desenvolvimento das espécies, portanto, todas teriam em comum uma conexão primordial que é separada e distinguida a partir das ciências biológicas.
Mesmo assim, cada criatura permanece “como um monstro amputado de todas as suas virtualidades, salvo as que o caracterizam. Tais monstros se ‘entredevoram’, e a evolução vai se desenvolvendo graças a tal fratricídio generalizado” (p.132). Significa que Flusser entende que, conforme todos seres são próximos entre si, ou mesmo irmãos, a busca pela sobrevivência (do mais apto) acaba repercutindo em fratricídios. E isso não se limita apenas ao reino orgânico, mas Flusser ainda menciona que as “máquinas inanimadas” vêm também como uma ameaça à “cadeia alimentar” até então dominada pelo homem pós-industrial, pondo-o à mercê de sua defasagem quando estas máquinas começarem a se desenvolver ainda mais e ganharem características próximas ou mesmo superiores às dos humanos. Nessa passagem, na página 132, o pensador tcheco-brasileiro toca de leve em seu conceito de pós-história, abordado em livro de mesmo nome, já visando ao poder dos aparelhos e dos programas, bem como ao superdesenvolvimento da cibernética, indo de encontro com os discursos neoluditas e distopias, nas quais as máquinas “devoram” os homens – desde Metropolis e Tempos Modernos a Matrix, das máquinas fabris às cibernéticas.
Por fim, Flusser apresenta uma espécie de cena que retomaria a questão do fascínio pelo Vampyroteuthis. Narra-se a ação de um observador a encarar o molusco por detrás do vidro de um aquário, sendo que essa superfície de separação tanto lhe conforta o medo do bicho como forja uma sensação de segurança invisível, que afasta o animal do homem – assim como o recalque que o pressiona aos abismos do oceano e da alma. E esse mesmo mecanismo é o que reprime a violência do Vampyroteuthis, criatura que fascina e cria embaraço, paralisia. Porque o observador sabe que, se o vidro quebrar e o ser se libertar, teremos a explosão da sombra e da emoção violenta, o caos, o nazismo, como diz Flusser.
Mas, ainda assim, tentamos nos comunicar, entrar em acordo com o cefalópode que se esforça para manter uma conversação a partir da modificação cromáticas de sua pele. Não sabemos como reagir a isso, mas é preciso se relacionar com o outro sem transformá-lo em uma aberração (bater o cachimbo contra o vidro), sem querer fazer as pazes, educá-lo ou mesmo dar-lhe as costas e repudiá-lo. Devemos tratá-lo pelo que ele é. Por isso, a pergunta do autor-observador é: por quê dar um pneu para um molusco brincar, como se este fosse um chimpanzé? O funcionário questionado não sabe o que dizer, senão retornar à sua condição infantilizada e recalcada pelos aparelhos que o fazem informar o horário de fechamento do aquário, “conforme regulamento do sindicato ao qual pertence” (p.134). 
Concluindo, Flusser elenca alguns exemplos da presença vampyroteuthica no mundo dos homens: sob a forma de moluscos próximos, guardados em aquários; sob a forma de cadáveres emergidos no mar da China; como serpente devoradora e mitológica; como ornamento antigo; sob forma de ideologias sangrentas do programa de “direita” ou de constante orgasmo pela revolução permanente, no caso da “esquerda”. Enfim, diversas representações simbólicas são criadas, mas, acima de tudo, o Vampyroteuthis sempre esteve presente em nosso próprio espelho, como nosso antípoda. “Pois contemplar tal espelho, a fim de reconhecer-se nele, e a fim de poder alterar-se graças a tal reconhecimento, é o propósito de toda fábula, inclusive desta” (p.134), que ilumina as conexões entre molusco e homem, entre Homo demens e Homo sapiens.

Referências
BULFINCH, Thomas. O livro de ouro da mitologia. Histórias de deuses e heróis. Rio de Janeiro: Ediouro, 2006
FELINTO, Erick. A religião das máquinas. Porto Alegre: Editora Sulina, 2005
FLUSSER, Vilém. Vampyroteuthis infernalis. São Paulo: Annablume, 2011


¹ Todas as referências sem indicação de autor se referem ao livro Vampyroteuthis infernalis.

domingo, 17 de junho de 2012

Um terrível amor pela guerra


James Hillman (1926 – 2011) foi um psicólogo americano pós-junguiano, responsável pela criação de uma nova forma de psicologia, a arquetípica. Com uma considerável obra escrita e publicada, Hillman é autor do livro "A terrible love of war" (2004), no qual ele busca explicar em quatro grandes capítulos as seguintes temáticas: "A guerra é normal", "A guerra é inumana", "A guerra é sublime", "A religião é a guerra". Isto é, ele traz à tona a presença da guerra no cotidiano e na história do homem, a partir de um viés mitológico e psicológico, assim como fez Jung, no ensaio Wotan, sobre o nazismo. Ainda não o livro, mas uma parte dele está disponível em espanhol, neste link, e a seguir disponibilizo a tradução de uma resenha escrita por Dennis Patrick Slattery.


Este novo livro, com autoria de um dos mais prolíficos (30 livros), inspiradores e inquietantes psicólogos escritores atuais, irá provavelmente servir de um chamado às armas para aqueles indivíduos ou grupos que aceitaram idéias simples e convencionais sobre a presença da guerra na história da humanidade. Em vez de repetir a fácil conversa política e sociológica sobre a gênese da guerra e suas intenções, James Hillman prefere mover verticalmente, diretamente à mitologia, à religião e aos porões da alma, de modo a descobrir os mais básicos impulsos à guerra, os quais, ele acredita, serem uma constante e até mesmo algo normal na história da humanidade. Escute a linguagem da mídia, com seu léxico de guerra, batalha, luta, competição, vencer, perdedor - todas essas palavras apontando para a conquista.

Ele começa citando o Êxodo na epígrafe de seu livro: "O Senhor é um homem de guerra. Senhor é Seu nome" (15:3). Ele então divide sua exploração da guerra em quatro capítulos: 1. A guerra é normal; 2. A guerra é desumano; 3. A guerra é sublime; 4. A religião é Guerra. As treze páginas de bibliografia reúnem vozes antigas e modernas sobre guerra, violência, batalhas, derrotas, heróis e mitologias da guerra, freqüentes na figura de Ares (grego) e Marte (romano). Que lugar, pergunta Hillman, tem a divindade no chamado à guerra e em sua justificativa? Nós, ele indica ao fim desse freqüentemente chocante e desconcertante estudo, nem ainda começamos a despertar o complexo e matizado poder do deus da guerra, a ponto de nós continuarmos como uma nação que se sente melhor perambulando pela névoa dos propósitos e presença da guerra do que aprofundar nossos conhecimentos dos valores que temos, conscientemente ou não, os quais põem a presença da guerra como uma ocorrência normal. Não é estranho ou peculiar, mas o cotidiano é a enérgica face da guerra diante de nós. Como nossos líderes, ou ainda nós mesmos, entendem a guerra se dá muitas vezes através de um compromisso imagético falho. Segurar-nos e manter-nos reféns do poderio e da presença da guerra deriva diretamente de nossas crenças - religiosa, política, pessoal, persistente - que nos protege da guerra com a mesma ferocidade com a qual nós disfarçamos esse terrível e destrutivo impulso dos outros.

Hillman constata ao fim do livro que uma grande intenção de sua escrita sobre a guerra é "expor a desconhecida força de Ares/Marte no Cristianismo desde sua origem". Ele acredita que o Cristianismo esconde a si mesmo numa hipocrisia sobre ambas guerra e paz, e que nada menos que um revisionismo das suposições cristãs sobre essas forças irá nos permitir imaginar guerra e paz de uma forma libertadora. Controverso! Você aposta, assim como em qualquer outro livro sério sobre a forte face da guerra no espelho das culturas mundiais deveria ser. Hillman deseja expor essa contradição fundamental que, enquanto nós fingimos procurar paz como uma nação, nós percorremos o mundo com grandes varas, como se fosse buscando briga. Nosso compromisso hostil com o mundo num todo, nossas próprias duras estatísticas sobre violência doméstica, deveriam fazer qualquer indivíduo sério questionar o paradoxo, senão a ironia deslavada, dessas opiniões controversas.

O mais fascinante e provocativo capítulo, para mim, é o quarto: "A religião é Guerra". Ele me levou aperguntar se a Guerra, em si, não é uma religião, uma forma de acreditar que o conflito, a violência, o ódio e o preconceito são a final solução para o desacordo. Esse capítulo é particularmente notável em sua distinção entre religião e mito: "Deuses míticos diferem daqueles da religião, porque mitos são histórias e seus deuses são 'um tipo de existência', nas palavras de Carl Kerenyi". Histórias místicas, no fim das contas, não foram feitas para serem tomadas literalmente, mas literariamente, ou seja, elas não ocorreram historicamente, mas imaginariamente. Mitos não nos pede para que acreditemos neles, assim como a religião faz em suas formas codificadas de fé: "A religião, em contraponto, codifica uma história particular como uma revelação de uma palavra de um deus particular, de verdade imortal à história humana, em um específico lugar e num específico momento" ... e portanto "a religião lê o mundo literalmente".

Quando a guerra é invocada como uma solução, deus, deusa, divindades, o transcendente é invocado como o veículo que serve simplesmente como uma justificação para o ato da guerra. Aqui, algumas conexões entre violência e o sagrado, entre amor e guerra, são inevitáveis. Hillman atenciosamente prova o relacionamento entre o amor e a guerra, Afrodite e Ares, como estranhos e exóticos parceiros de cama; ele pede para que nós retornemos e recuperemos os mitos antigos da Grécia e de Roma como formas de imaginar novamente as empoladas, persistentes e sedadas razões por trás do engajamento bélico, de um modo simples e rápido de se pensar complexamente.

Nossa metodologia é enviesada, como acredita Hillman: "A guerra não é um produto da razão e não produz razão". Nota para a ausência de armas de destruição em massa no Iraque. Não importa que elas nunca tenham sido encontradas. Em vez disso, nós devemos, assim como Hillman sugere, olhar para alguns dos atributos que caracterizam a psique americana, especialmente aquelas não tão presentes na atualidade: "repressão, limitação, prudência". Um dos deuses prevalescentes, ele diz, é o deus "Temeridade - Ágil, Rápido, Instantâneo, Relâmpago, Versátil". Seu melhor exemplo da perversidade pernetrante de tal deus surge nessa citação: "Na verdade, a guerra contra o Iraque começou realmente quando o governo dos Estados Unidos a declarou concluída".


O que eu achei de mais valoroso ao ler esse meditativo, forte, irreverente e violentamente relevante livro, escrito por um dos nossos melhores pensadores iconoclastas da atualidade, é que eu senti, finalmente, que algo do sombrio se sobressai à nossa própria inocência, assim como uma pessoa é tirada de seu sono com um jato de água muito gelada. Nós, cada um de nós, estamos pagando por essa guerra atual; nós temos o dever moral de prestar atenção a essas intenções míticas e religiosas.

segunda-feira, 4 de junho de 2012

Modificações na pesquisa

Pois é, acabei mudando algumas coisas no meu projeto de pesquisa sobre o Gottfried Helnwein. Segui os conselhos do meu orientador e tornei o foco mais voltado para a comunicação. Caso tenham interesse, este é o novo projeto, que também tem outro nome.

PROJETO: Fotografando Sombras - Um estudo sobre a obra do fotógrafo Gottfried Helnwein