domingo, 18 de janeiro de 2015

Da Imortalidade, Vilém Flusser

Papillon, de Grace Chen


O único bicho que concebe a morte é o homem. Por isto não pode haver suicídio entre os animais (por mais que o contrário seja afirmado por fábulas e lendas). Mas o conceito da morte varia ao longo da história humana. Escrever tal história, tendo em mira tal variação, seria sem dúvida empresa aventurosa (e talvez divertida). A dificuldade é que pouco ou nada sabemos a respeito da morte paleolítica, além do detalhe revelador (e inquietante) de que os Neandertais enterravam seus mortos sobre camas de flores. No entanto, é possível imaginarmos o seguinte itinerário para o historiador do conceito da morte: procurar acompanhar as evoluções e involuções de como o homem e a sociedade se identificaram ao longo dos milênios (as antropologias sucessivas e mutuamente sobrepostas) e localizar o conceito da morte em tal contexto.  Isto porque indubitavelmente o conceito (ou pré-conceito) da morte forma o próprio núcleo de toda antropologia (como afirma a primeira sentença deste artigo). Ora, é relativamente fácil captar o tema central, variado pelas várias antropologias: sou corpo ou tenho corpo?

Posta assim em termos crus, a morte pode ser concebida (ao longo da história e atualmente) apenas de duas maneiras: enquanto desintegração do corpo ou desintegração do possuidor do corpo. Mas a coisa não pode ser posta assim cruamente. Porque a formulação aqui proposta pressupõe desde já toda a evolução milenar da antropologia. A formulação é tardia, e o termo "desintegração" nela contido o revela. Muito provavelmente os caçadores paleolíticos não se tomavam por inteiros, mas por integrados (na tribo e no ambiente vital, Lebenswelt, no qual a tribo se movia). E como não eram inteiros ("indivíduos", "identidades"), um possuidor do corpo não era concebível. A morte dizia respeito apenas ao corpo. No entanto, dada a integração do corpo no que atualmente chamaríamos de "ecossistema", o termo "desintegração" não tem muito sentido. Por certo: o ecossistema como um todo pode desintegrar, mas tal catástrofe não podia ser chamada de desintegração, mas de re-integraão ao conjunto ambiente. O Antigo Testamento capta tal re-integração ao dizer: terra à terra, pó ao pó. A morte paleolítica não é pois concebida enquanto ponto final, mas enquanto ponto em ciclo.

Um futuro historiador da morte deverá provavelmente partir de considerações como estas. Mas o presente artigo pode perfeitamente abandonar o percurso neste ponto. Porque (por grande surpresa) reconhecemos a morte paleolítica (aqui penosamente e duvidosamente reconstruída) à nossa própria morte. Se adaptarmos os termos um pouco à nossa própria situação, a descrição é adequada. Não precisamos acompanhar a evolução e involução da antropologia através dos milênios: a antropologia paleolítica é a nossa. Toda a problemática milenar do possuidor do corpo (seja ele mortal ou imortal) não mais nos diz respeito. Mas dizer que estamos voltando para o paleolítico (ou que estamos saindo finalmente dos dez mil anos de neolítico) é dizer que tudo deve ser repensado. Embora possamos sustentar que os dez mil anos de proto-história e de história não passam de interrupção da a-história, devemos admitir que pré-história e pós-história não são a mesma coisa. Ao voltarmos para o paleolítico, devemos repensar o conceito da morte que volta a ser o nosso.

Partamos da afirmação que o caçador paleolítico "ainda" não se tomava por indivíduo e de que, assim, já não nos tomamos. Os milênios que nos separam do caçador (ou, no caso do caçador amazoniano, os milhares de quilômetros) são, deste ponto de vista, o trecho da individualização progressiva. O trecho ao longo do qual o individualismo ia se tornando sempre mais grosseiro ("rugged"). Mas afirmar isto é curioso. Porque individualização progressiva significa divisão progressiva. "Indivíduo" é o que, em determinado estágio do progresso de divisão, se recusa a ser dividido. Não esqueçamos que o "indivíduo" é a tradução latina do "átomo" grego. De maneira que o caçador não é indivíduo, porque "ainda" não divide, e nós "já" não o somos, porque sabemos que nada é indivisível. "Dividir" e "cortar em rações" significam o mesmo gesto. De maneira que o caçador não é indivíduo, porque "ainda" não raciocina, e nós "já" não o somos, porque raciocinamos até a raiz, radicalmente.

Não exageremos: raciocinar, dividir, cortar em dois é gesto humano, e o caçador o executa. A prova: fabrica facas. E sobretudo o caçador executa o corte fundamental entre sujeito e objeto: abre o abismo da alienação entre o homem e o mundo. Aliás, os termos "dividir", "dois", "duvidar", "Deus" e "diabo" provêm da mesma raiz "d.v", a qual, embora neolítica (indogermânica) aponta horizontes precedentes. No entanto, a ferida aberta pela faca de pedra entre o mundo e o homem não é mortal, já que permite aos homens se integrarem no mundo por cima do abismo. Em termos mais prosaicos: a racionalidade articulada na fabricação da faca não impede a irracionalidade do rito e da magia. Embora pois o caçador, sendo homem, seja bicho alienado, sabedor da morte, concebe a morte não como ponto final, mas como ponto em ciclo.

Retificado o tiro, podemos afirmar que o gesto de cortar foi se refinando a partir do neolítico, e que as rações cortadas foram se tornando sempre mais finas. Em outros termos, tudo que era cortável era sempre melhor definido. No entanto, nem tudo era cortável. As facas se dirigiam contra o mundo tornado objetivo pela faca paleolítica (cortavam os objetos em rações sempre mais finas), mas falaram em direção ao sujeito dos objetos. A partir daí, aconteceu algo deveras espantoso. Os recortes finíssimos dos objetos (todas essas partículas de partículas) eram tão minúsculos que não mais eram "concebíveis" enquanto objetos: os dedos não mais os concebiam. Não mais tinha sentido afirmar se tais particulas são ou não objetivas. Isto rebateu sobre o sujeito até então mal raciocinado. Raciocínio neuro-fisiológico, psicoanalítico, existencial (e outro) passou a recortar o jeito em rações de partículas como actomas, decidemas, bits de informação, saltos sobre fendas do sistema nervoso. Ora, isto não apenas destruiu todo conceito de "indivíduo" (nenhum núcleo duro do sistema psico-somático resistiu à faca da razão), mas destruiu igualmente a distinção entre sujeito e objeto. Neutrino é tão objetivo ou tão pouco objetivo quanto o é decidema, ou decidema é tão subjetivo ou tão pouco subjetivo quanto o é neutrino. Em meados do nosso século, a razão cortadora tinha reduzido tanto objeto quanto sujeito à poeira da análise calculadora, e as facas não têm mais o que cortar doravante. O paleolítico foi restabelecido: morte enquanto desintegração não mais é concebível.

O que leva estas considerações a refletir sobre a afirmação de que o homem paleolítico não era inteiro, mas integrado. Sem dúvida, estamos voltando para o paleolítico no sentido de termos perdido nossa integridade. Estamos desintegrados enquanto possuidores de corpo e conceitos como "alma", "espírito", "o Eu" etc, não mais nos dizem respeito. Mas estaríamos sendo integrados em algo que nos abarcaria, por termos rompido a casca do Eu? A resposta merece breve excurso:

A desintegração da individualidade (a descoberta de que tudo que se passa "dentro do sujeito" pode ser dividido em partes sem jamais resultar em núcleo indivisível) levou ao abandono da distinção entre sujeito e objeto, "dentro" e "fora". Isto, por sua vez, tornou possível simularmos os processos "interiores" (pensamentos, decisões, projetos etc) em fenômenos "exteriores". Por exemplo: se todas as nossas decisões se revelam, sob análise, enquanto computações de decidemas pontuais, torna-se possível construir instrumentos que decidem. Mas sabemos (graças a análises precedentes) que instrumentos rebatem sobre quem os utiliza. Por exemplo: alavancas são máquinas que simulam braços, mas com o tempo o utilizador de alavancas move os braços como se fossem alavancas. De maneira que a simulação dos processos outrora tidos por "interiores" (mentais) em instrumentos "exteriores" (físicos) leva necessariamente a um comportamento "mental" mecânico e calculado. O resultado disto é que cai por terra a distinção entre "corpo" e "mente". Os dois se confundem, e afirmar que a mente é "como o corpo se move", ou que o corpo é "mente palpável" passa a afirmar o mesmo de dois pontos de vista. Ao se desintegrar o possuidor do corpo (a mente), desintegrou-se igualmente o corpo.

Dizer que o corpo se desintegrou parece afirmar o absurdo. Afinal, podemos observar mais ou menos nitidamente corpos animais e humanos, inclusive o nosso próprio, e não temos dificuldade em distingui-los. Mas reflexão mais atenta revelará a desintegração aqui afirmada. Tornou-se impossível definir o corpo humano "de dentro para fora" e "de fora para dentro". Os instrumentos que nos cercam são prolongamentos do corpo (automóvel prolongamento de pernas, TV prolongamento de olhos). Perda de automóvel é como amputação de perna. Esta máquina de escrever é parte mais vital de meu corpo do que meus cabelos ou unhas. Igualmente pode se afirmar que os instrumentos invadem o corpo. Óculos seriam interior ou exterior do corpo? E dentaduras artificiais? E marca-passo? Ora, se não mais podem ser distinguidos corpo e não-corpo (animado e inanimado), o conceito da morte enquanto desintegração do corpo perdeu sentido. Posso substituir um órgão do corpo após outro por instrumentos, e destarte evitar a morte. Aliás, a definição da morte clínica se torna impossível. Por outro lado, a minha voz continuará funcionando em fita de áudio, e meu movimento em fita de vídeo (isto é, meu corpo continuará agindo) depois do enterro do corpo. Fim do breve excurso: ao desintegrar-se a "mente" (o possuidor do corpo), desintegrou-se também o corpo, a morte enquanto desintegração perdeu sentido, e o paleolítico está restabelecido.

Uma vez que o outrora chamado "complexo psico-somático" se revela computação de partículas pontuais (das quais não tem sentido afirmar se são mentais ou físicas, subjetivas ou objetivas), surge a questão seguinte: como tal computação se processa? O que envolve o conceito de "campo"?

Por certo, o complexo "psico-somático" pode ser aproximado de diversos pontos de partida. Este artigo optará pelo approach biológico e comunicológico, para depois procurar sintetizar o resultado. Em época não muito distante, quando corpos vivos eram tidos como entidades disponíveis, o problema era explicar a origem dos corpos e a posição do corpo humano no contexto dos corpos vivos (darwinismo). O problema atual é outro. De um lado, os corpos vivos são vistos enquanto excrescências provisórias de corrente genética "imortal", enquanto fenótipos que assentam sobre genótipos. Por outro lado, os organismos são vistos enquanto integrados em ecossistemas, cada qual ocupando um nicho, de maneira que os organismos são funções de relações complexas. Para exemplificar os dois aspectos: Borboleta é determinada computação de genes tornada visível e palpável, que funciona como órgão sexual de determinadas plantas. Ora, isto é visão de "campo": os organismos vivos são realizações passageiras de virtualidades contidas em campos, e tais realizações ocorrem ao se juntarem (computarem) as virtualidades distribuídas no campo. Organismos vivos podem ser concebidos enquanto adensamentos (curvaturas) no campo genético e ecológico que ondulam. Quando surge determinada onda ("organismo") falamos em nascimento, e quando sossega, em "morte". A morte é, pois, apenas fenomenal (aparente), já que o campo a ignora. O que vale para todos os organismos, inclusive o humano.

Mas há uma diferença entre o organismo humano e a maior parte dos demais: o homem transmite informação adquirida, não geneticamente programada. Os derradeiros defensores da "mente" se agarram a isto: "mente" seria produção, armazenamento e transmissão de informação não geneticamente programada, portanto "anti-vida". Atualmente se tornou possível (pelo menos em tese) analisar os processos "mentais" no sentido de "processos de aquisição de informação", decompô-los em bits, e mostrar como a computação de tais bits se processa. Surge a imagem de uma rede composta de "canais" pelas quais bits de informação transitam, para se combinarem em nós (cruzamentos), e lá constituírem informações novas (variações, mutações ainda não realizadas anteriormente). Em outros termos, há campo de informações virtuais que é estruturado em rede, e nos cruzamentos dos fios ocorrem realizações de informações outrora chamados "Eus". Não é possível, neste artigo, entrar na questão de definir "informação" no sentido aqui empregado. Basta dizer que se trata de fenômeno convencionado. Com efeito, as simulações de "mente" (as inteligências artificiais) são instaladas em redes de canais reversíveis, formam cruzamentos em tais redes, realizam informações novas, portanto simulam "Eus".

Os dois approaches (o biológico e o comunicológico) coincidem, se recobrem e formam uma única imagem: a de campo ondulatório estruturado em rede. Podemos visualizar tal imagem em tela de computador sob forma da dita "rede de arames": o que outrora era chamado "corpo", e o que outrora era chamado "mente" aparece em tal imagem enquanto curvaturas, dentro das quais os fios se condensam. E se "animarmos" tal imagem, veremos como tais curvaturas surgem para depois desaparecerem. Ora, estaremos visualizando a imagem da antropologia tal como se impõe atualmente: somos realizações passageiras de virtualidades distribuídas sob forma de rede em campo. E somos tanto mais reais (concretos) quanto mais densas as computações de virtualidades que nos constituem. Somos integrados em campo estruturado de virtualidades.

Não exageremos o perfume paleolítico que emana desta nossa antropologia: não inteiros, mas integrados. Porque o que sustenta essa nossa antropologia pós-histórica é a visão provavelmente estranha ao caçador de mamutes: a visão da entropia. Concebemos (e começamos a vivenciar) o mundo ambiente e nossa própria existência enquanto amontoado de partículas que tendem a se distribuírem sempre mais uniformemente. Por certo, isto pode ser considerado um conceito da morte: tudo tende para a "morte térmica", a perda de toda informação, o equilíbrio, o provável. Mas isto não é o conceito da morte visado  neste artigo, pela razão seguinte: podemos constatar, em toda parte, inversões da tendência para a entropia, epiciclos nos quais o tempo corre em sentido inverso: do futuro para o presente. Tais epiciclos negativamente entrópicos são responsáveis por todas as realizações de virtualidades (computações, improbabilidades), desde o átomo de hidrogênio e os gigantes vermelhos, até o complexo "psico-somático" de cuja morte aqui se trata. O problema é: como surgem tais improbabilidades e como desaparecem? Isto é o verdadeiro problema da morte e da liberdade no contexto atual, e o caçador paleolítico provavelmente não o tinha. 

Para inteligências artificiais (e para as nossas, simuladoras de computadores) o problema é falso. Dada a soma das virtualidades distribuídas em campo (soma astronômica embora finita), e dado o tempo disponível para a computação de tais virtualidades (na ordem de 16 bilhões de anos), as computações mais improváveis ocorrerão necessariamente por acaso. Por certo, o sistema neurocerebral é de tal complexidade improvável que é difícil admitir que surgiu ao acaso. Mas se tomarmos em consideração a soma das partículas envolvidas, e o tempo durante o qual tais partículas se combinaram e recombinaram, a emergência dos sistema a partir da entropia geral passa a ser necessário acaso. Mas tal visão calculadora, probabilística e aparelhística da criatividade não basta (por correta que seja). Dizer que um milhão de chimpanzés batendo máquinas escreveriam, com o tempo, a Divina Comédia por acaso necessário não explica Dante. Porque Dante já escreveu vários bilhões de anos antes dos chimpanzés (os outros word processors). Somos obrigados a admitir que a liberdade é aceleração altamente improvável do acaso necessário, e que, no homem, ocorreu dupla inversão da entropia: somos realizações aleatória de virtualidades que realiza deliberadamente. Dizer isto é articular um mistério muito maior que o da "alma imortal" ou "do espírito libre", e é bom admiti-lo. E o nosso conceito da morte se liga a isto: morte enquanto horizonte da liberdade.

Resumamos o percurso: durante a época proto-histórica e histórica a morte era concebida enquanto desintegração do corpo e/ou do possuidor do corpo. Por exemplo: o possuidor do corpo era tido como imortal para minimizar a morte do corpo. Na pré-história, muito provavelmente o conceito da morte era outro: como o homem se sentia integrado em contexto e não formando entidade inteira, a morte era concebida enquanto re-integração no contexto. Tudo indica que a época história está por encerrar-se. Que estamos de alguma maneira voltando para o paleolítico a-histórico e não-raciocinante. Também o conceito atual da morte aponta tal volta. Concebemos a morte no além da distinção entre corpo e mente, e a concebemos relacionalmente. Mas refletir sobre o conceito da morte não basta. Necessário é vivenciá-la.

Da Imortalidade II

Conceito e vivência se co-implicam. O fato óbvio de que não podemos ter vivência da própria morte (onde está minha morte, não estou eu, e onde estou, não está minha morte) ficou ofuscado durante milênios pela noção de um possuidor do corpo testemunha da morte do corpo. Atualmente (e malgrado a sobrevivência de ideologias neolíticas), a própria morte é vivenciada enquanto horizonte jamais alcançável, já que se afasta ao ser aproximado. O que permite vislumbrar o impacto existencial da morte é a vivência da morte do outro. E, conforme o argumento seguinte se esforçará por mostrar, tal vivência é a da rede.

Embora vivências sejam dificilmente quantificáveis (experimentos nesta direção com ratos e insetos não são concludentes), podemos afirmar que a vivência da morte do outro está diretamente proporcionada com a proximidade de tal outro. A morte do meu vizinho terá impacto maior que a morte de 10.000 chineses. Sem entrar nos problemas da proxêmica ("proximidade" é conceito espaço-temporal difícil), pode ser afirmado que tal redescoberta da morte enquanto sempre "morte do outro" contribui fortemente para a decadência das ideologias modernas (humanistas). Querer "amar a humanidade" ou querer "lutar pelo povo" se revelam não apenas insinceridades existenciais, mas sobretudo irresponsabilidades. Dada a vivência concreta da morte, sou responsável pelo outro em função da sua proximidade. O termo "competência" (tão importante no contexto atual) entra em jogo. Minha competência tem determinado âmbito que pode ser aumentado por disciplinas várias, mas que resta sempre limitado. Ninguém jamais (mesmo munido de inteligências artificiais) pode ser competente para fazer qualquer coisa a respeito da "humanidade" ou do "povo". Todo engajamento neste sentido é necessariamente demagogia irresponsável. Curiosamente, isto faz ressurgir a noção do "amor ao próximo", central no judeu-cristianismo.

Se analisarmos fenomenologicamente a vivência da morte do outro, constataremos que se trata de vivência de perda. A morte do outro nos diminui, empobrece. Atualmente é estupidez querer distinguir entre "substância" e "acidente", mas podemos aventurar a afirmação de que a morte do outro é perda tanto mais substancial, quanto mais próximo é o outro. Em casos de proximidade íntima, a morte do outro pode equivaler à perda da substância toda: com a morte do próximo, eu deixo de existir. E esta vivência do nada que se abre com a morte do próximo se manifesta enquanto sensação do desaparecimento do mundo: nada mais interessa, e portanto, nada está lá objetivamente. A distinção entre sujeito e objeto caiu por terra intelectualmente, a experiência da morte do outro confirma tal interdependência existencialmente.

Ora, isto implica que sou o que sou em função do outro. Que "eu" é o que é chamado de "tu", e que tal "eu" é tanto mais concreto, quanto mais intenso o chamamento por parte do outro. A imagem que isto evoca é a da mesma rede que já tem sido mencionada na discussão precedente. O "eu" é cruzamento de fios intersubjetivos, e quando um nó se desfaz ("morte do outro"), o cruzamento "eu" fica com fios soltos no vazio, e ameaçado de desfazer-se. E o ambiente objetivo se revela função dos fios intersubjetivos ("objetividade convencionada"). Isto merece pausa.

Quando a noção de um possuidor do corpo (de um núcleo duro da mente) ainda valia, o problema da identificação era o de "fidelidade ao núcleo duro" ("this above all: to thine own self be true" e outras grandiosidades comparáveis). O problema era logicamente insustentável, já que identidade implica diferença: não posso identificar-me com meu próprio "eu", a não ser que tal "eu" seja diferente de mim mesmo. Atualmente, e sob o enfoque da experiência concreta da morte do outro, tal estupidez da auto-identificação ("autenticidade") consagrada pelos milênios está sendo felizmente superada. "Identificar-se" passa a ser assumir relações (responsabilidades) que unem os cruzamentos na rede da intersubjetividade. "Sou eu" na medida em que assumo ser pai, ou escritor, ou jogador de bridge, ou cliente de loja de sapatos. Fora de tais relações não sou nada, e sou tanto mais quanto mais intensas e extensas as relações que assumo. O importante em tal vivência da identificação é a reversibilidade ("dialogicidade") das relações assumidas: não basta que seja chamado de "filho da puta", devo assumir-me tal para que o seja. Identificação envolve responsabilidade. Isto é o problema do antissemitismo e outros fenômenos do mesmo tipo: sou judeu na medida em que respondo ao antissemita.

Ora, um tal "ser para o outro" fundamenta a vivência da morte. Se sou para o outro, e se o outr desaparece, não sou mais, "morri" no sentido existencial do termo. Por certo, se o outro para o qual sou o que sou desaparece, continuam persistindo numerosas relações que me unem aos demais outros, e sobretudo continua persistindo o organismo no qual tais relações coincidem. De maneira que estritamente não morro com a morte do próximo com o qual me identifico (e que os Antigos chamaram de "alter ego"). Mas surge a vivência da irresponsabilidade: não mais tem sentido querer responder a qualquer chamamento. Tal vivência da liberdade (sou irresponsável, não dependo, não sou definido, limitado) se realiza pelo ato do suicídio, que é o ato de suprema liberdade. Com a morte do outro com o qual me identifico não vale mais a "pena" continuar procurando identificar-me. O slogan "give me liberty or give me death" (e sua variante des-existencializada "independência ou morte") se revelam demagogia: dar-se à morte é liberdade.

No entanto, antes de refletir sobre a morte enquanto horizonte da liberdade, é necessário enfocar outro aspecto da rede da intersubjetividade. Agarremo-nos à imagem da rede de arame na tela do plotter: constataremos curvaturas nas quais os fios se cruzam densamente, e trechos de distribuição relativamente esparsa. Tal imagem, se contemplada com atenção, destruirá a noção para-política de "direita" e "esquerda". Definamos "direita" enquanto afirmativa de que a sociedade deve ser boa para o indivíduo, e "esquerda" enquanto afirmativa de que o indivíduo deve ser bom para a sociedade. Ora, a imagem (embora apenas metáfora) mostra concretamente que não apenas a noção do indivíduo, mas igualmente a da sociedade são abstrações ideologizadas: não há sociedade sem indivíduo, nem indivíduo sem sociedade. Isto implica categorias políticas diferentes das da tradição: não importa querer mudar a sociedade, nem querer mudar o homem, o que importa é querer mudar as relações intersubjetivas. A consideração das consequências de tal categoria política extravasam o escopo do presente artigo. No entanto: morte e política se co-implicam.

A morte do próximo dissolve minhas responsabilidades: a voz que me chamava calou, e não há ao que possa responder doravante. E, ao dissolver minhas responsabilidades (ao libertar-me), a morte do próximo fez com que não mais exista eu. (Tal vivência é tão fortemente carregada, "estética", que é difícil falar sobre a mesma prosaicamente). Ora, existe na nossa tradição um fio de pensamentos e atos (o judaísmo) que procura articular a vivência, e traduzi-la em ato, mas nos seguintes termos: para perceber a voz do outro que me chama e provoca minha resposta, deve haver um Totalmente Outro. Senão, o meu próximo seria igual a mim mesmo, e não poderia haver relação intersubjetiva ("amor") entre mim e ele. O meu outro é o outro de mim, por eu reconhecer nele o Totalmente Outro. Em termos judaicos: o rosto do meu próximo é a imagem do Totalmente Outro (aliás, a única imagem). Em suma: sou responsável pelo meu próximo ("amo-o"), porque reconheço na sua voz o chamamento do Totalmente Outro ("amo o Totalmente Outro acima de todas as coisas").

A tradição judaica aqui evocada se impõe, porque nela a vivência da rede (da inter-relação) se articula nitidamente. O que explica, aliás, a volta de numerosos cristãos para as raízes judaicas do cristianismo. O relativismo do judaísmo é de extrema radicalidade: existo apenas em relação a Deus (a voz do Totalmente Outro), mas Deus existe apenas em função da minha resposta. Se  não ouço a voz de Deus ("chemà Israel" = ouça Israel) não existo, mas se não assumo tal vocação, Deus não existe. Angelus Silesius: "Ich weiss, dass ohne mich Gott nicht ein Nu kann leben" = "Sei que sem mim Deus não existirá nem por um só momento". Por isso, falar "sobre" Deus (teologia) é impossibilidade ideológica e reificante. O que é possível é responder a Deus (prece).

Em tal contexto de vocação e responsabilidade, o judaísmo (sobretudo o talmúdico) procura captar a vivência da morte do outro. Descoisificado (e despersonalizado) Deus, portanto descoisificada a "alma", a noção da imortalidade da alma no além se dissolve. Pelo contrário, todo ato que visa recompensa no além passa a ser "egoísmo", isto é, paganismo. A morte é assumida como horizonte, o que desvia a questão da imortalidade para campo diferente. Se eu sou a soma das responsabilidades que assumo, se "sou pra o outro e através disto para o Outro", então não morro enquanto os outros (e o Outro) respondem por sua vez às minhas respostas. Em termos judaicos: a minha imortalidade é a memória dos outros. Quando o outro morre, e sempre em várias ocasiões, o seu nome é pronunciado na fórmula "que sua memória seja benção". Os mortos vivem, e os vivos são responsáveis pela vida dos mortos; ou, em termos relacionais: os mortos vivem em função dos vivos, e os vivos em função dos mortos. Tal vivência radical da imortalidade enquanto "bola de neve" (para recorrermos a termo caro à informática) só pode ser captada sob o signo do "amor": é pelo amor ativo de Deus sobre todas as coisas que somos a imortalidade dos nossos próximos, e nossos próximos são nossa própria imortalidade.

Encerrado o excurso para o judaísmo (que é mentalidade tão radicalmente relacional, "imaterial", que passa a ser captável apenas atualmente), podemos refletir sobre a memória enquanto sede da imortalidade. Sabemos atualmente simular memórias em instrumentos, o que nos permite captar seu funcionamento: memória é armazém de informações adquiridas, armazém no qual tais aquisições são recombinadas para resultarem em informações novas. Partamos disto:

Argumento precedente sugeriu que o "eu" é cruzamento de relações intersubjetivas. Outro argumento sugeriu que o aspecto especificamente humano é o fato da elaboração, armazenamento e transmissão de informação adquirida. Reunindo os dois argumentos: o "eu" é a memória dentro da qual fluem informações emitidas por outras memórias, e a partir da qual fluem informações em direção de memórias outras. Essa descrição é de tecnicalidade repulsiva, e com efeito, sugere a dita "sociedade telemática", isto é, aparelhos simuladores de homens ligados entre si por fios reversíveis. Duas palavras de cautela: (1) nenhuma tecnicalidade deve ser repulsiva, porque "técnica" (em latim: "arte") é o que há de mais digno no homem; e (2) a noção da sociedade telemática deixa de ser prosaica, se vista contra o fundo da vocação responsável discutida nos parágrafos precedentes. Ora, se conseguirmos pôr entre parênteses a repulsa que nos causa a descrição de um "eu telemático", a vivência da imortalidade, atualmente confusa, vai adquirir contornos.

Várias tecnicalidades quanto à imortalidade nos confundem. Marilyn Monroe é imortal nos filmes. Franco poderia ter sido imortal, não tivessem os médicos desligado determinados aparelhos. Somos todos imortais na memória do Ministério da Fazenda. E na medida em que as memórias se aperfeiçoam (os chips de silício são substituídos por neurônios etc), não apenas todo evento, por ínfimo que seja, pode ser imortalizado, mas igualmente pode entrar em computações novas. Por exemplo: podemos fazer com que um Alexandre Magno memorizado seja vencido pelos Persas. Não se conteste isto pelo argumento metafísico: Alexandre memorizado é menos "real" que Alexandre de carne e osso. Ivan Karamazov é mais concreto (enquanto vivência) que Dostoiévski. Não há dúvida: a técnica vai confundindo nossa vivência da morte e da imortalidade, o que não deixa de ser paleolítico, no sentido deste artigo.

Reinjetada a vivência da responsabilidade, a vivência da morte e da imortalidade se delineiam mais nitidamente. O que finalmente exige que seja levantado o problema da vida (até aqui cuidadosamente driblado). Se abandonarmos escalas objetivas e racionais (como anos ou segundos), e se aplicarmos medidas existenciais (como vivências fortes e menos fortes), a vida se apresentará enquanto conjunto de vivências (o que parece, mas não é, tautologia). Não se trata de prolongar a vida ou a "expectativa da vida", mas trata-se de passar por vivências fortes. A vida "rica" é vida aventurosa. Ora, calcular a vida em vivências (como o ato em actomas, ou a fala em fonemas), implica inseri-la em campo. Vida enquanto computação de vivências virtuais distribuídas em campo. E tais vivências concretizadas são fios que unem a vida a outras vidas. Determinada vida é tanto mais rica quanto maior a responsabilidade pelas vivências que a perfazem. Dizer isto é articular a consciência "histórica" no sentido hegeliano: "sou responsável pelos meus atos, não pelos meus sofrimentos". Dizer que os responsáveis pela minha vida são os outros (capitalistas, comunistas, imperialistas, o governo, ou minha mulher) é admitir não-vida. Vida no sentido aqui proposto é concretização de vivências virtuais em cima de responsabilidade. Ora, se refletirmos sobre tal afirmativa, verificamos que vida e criatividade passam a ser sinônimos, o que permite localizar o terreno existencial da morte e da imortalidade. O terreno da liberdade. Morte = liberdade ab-soluta, e imortalidade = recusa de tal liberdade.

Querer prosseguir as reflexões na direção aqui apontada seria empresa perigosa: levaria até regiões pisadas por cretinos, já que anjos a elas se recusam: "fools rush in where angels feel to tread". Por isso é preferível encerrar o discurso sobre a imortaliadde por duas consideraões tangenciais, mas talvez pertinentes. A primeira diz respeito à afirmação dos Antigos, segundo a qual quem não busca fama é infame - porque quem não busca fama (quem não visa ser memorizado pelos outros) não assume rsponsabilidade pela sua vida: morre. A segunda consideração tangencial é relativa ao caçador paleolítico com o qual este artigo se iniciou (um tanto perfidamente): os problemas proto-históricos e históricos da morte e da imortalidade não mais são os nossos. Não podemos mais acreditar na alma imortal, e em compensação podemos imortalizar o corpo. De modo que devemos repensar a morte e imortalidade. Ora, o caçador em Lascaux pode servir-nos de guia. Para ele (pelo menos segundo nossas reconstruções) morrer significava reintegrar-se em contexto. O nosso próprio contexto é outro: não mais caçamos à beira da Dordonha. Mas podemos talvezcaptar a essência da vivência paleolítica da morte: é ela o método para passar para a imortalidade, desde que assumamos por ela responsabilidade. Que seja permitida a observação concludente: os Antigos afirmavam que a arte de morrer (ars moriende) é a suprema arte. Quiçá estamos, depois de interrupção de vários séculos, reaprendendo tal arte, não graças aos novos aparelhos, mas com a ajuda deles.

Texto original disponível em Flusser Brasil.

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