sábado, 31 de janeiro de 2015

Nossa comunicação



Para pensar a mídia, as novas tecnologias, o ensino e seu formato, as diferentes formas de comunicação e discursos, a política e o conhecimento:

O discurso teatral é o mais antigo, e antecede a história. É ele o discurso do patriarca que transmite os mitos da tribo à geração nova, é o discurso da avó que conta as lendas aos netos. O que caracteriza este tipo de discurso é o fato dos receptores encararem o emissor: formam um semicírculo em torno dele. Estão em posição de responsabilidade: vê-se obrigado a respostas. O teatro é discurso aberto para diálogos. A contestação, a reviravolta de discurso em diálogo, a "revolução", está no programa do teatro. Revoluções são possíveis em torno da fogueira e da lareira.
A partir do neolítico tardio isto passa a ser desvantagem. Quando se trata de empreendimentos coletivos como o são as construções de canais e de cidades, o que se pretende não é o diálogo, mas a obediência. A sociedade deve ouvir as mensagens sem poder contestá-las. A fim de conseguir tal método de discurso, é preciso que o emissor se torne inacessível para os receptores. É o método do discurso piramidal que vai ser introduzido. O qual vai formar a base comunicológica da história do Ocidente. Consiste ele na introdução de relais hierarquicamente organizados entre o emissor e os receptores. O primeiro exemplo de pirâmide é o reino sacerdotal. Nele as mensagens partem de um "autor" inacessível (um deus), e passam por "autoridades", relais cuja função é de manterem tal mensagem "pura" de ruídos, e de barrarem o acesso ao emissor para os receptores. O clima de responsabilidade, prevalescente no teatro, é subtituído pelo clima da tradição e da religiosidade. Tradição, porque os relais tra-dizem, e "religião" porque religam os receptores com o autor da mensagem. Tal clima do neolítico tardio continua caracterizando as pirâmides atuais, como sejam a Igreja, o Estado, o exército, os partidos políticos, as empresas.
A desvantagem de tal estratégia comunicativa é que torna difícil o diálogo. A estratégia é boa para o armazenamento de informações, mas má para a elaboração de informações novas. O tecido social estagna. Daí terem sido empreendidas reformas na pirâmide durante o renascimento. O propósito era o de preservar a eficiência da pirâmide, e simultaneamente abri-la para diálogos. Os relais foram transformados em círculos dialógicos, mas conservaram sua organização em hierarquia. O resultado foi o discurso em árvore. É ele o discurso característico da modernidade. A substituição das autoridades por círculos dialógicos subdividiu o discurso piramidal em ramos (especialidades), que tendiam a se subramificarem e a se entrecruzarem. Tal re-estruturação se revelou extremamente fértil. Todo ramo do discurso passou a produzir informações novas em progressão crescente. A dinâmica do discurso em árvore inundou a sociedade com verdadeira enchente de informações novas. Mas havia consequência imprevista. Todo círculo dialógico elaborou código específico no qual a nova informação era sintetizada. As informações destarte codificadas passaram a ser decifráveis apenas para os "especialistas" (participantes do ramo). Destarte as mensagens do discurso em árvore tendiam a ser indecifráveis para a sociedade como um todo. O que "resacerdotisou" e "reautorizou" o discurso. Os "leigos" não mais captavam as mensagens provindas das várias árvores: nem as da física nuclear ou da microbiologia, nem as das técnicas avançadas, nem as da arte de vanguarda. De modo que, a partir do século 20, os discursos em árvore deixavam de ter recepção geral, e passaram a ser absrdos enquanto métodos comunicativos.
A solução do problema é traduzir as mensagens dos discursos em árvores para códigos socialmente decifráveis. Construir aparelhos que "transcodam". O resultado disso é o discurso anfiteatral. É ele característico da autalidade.Os aparelhos da comunicação de massa são caixas pretas que transcodam as mensagens provindas das árvores da ciência, da técnica, da arte, da politologia, para códigos extremamente simples e pobres. Assim transcodadas, as mensagens são irradiadas rumo ao espaço, e quem flutuar em tal espaço e estiver sincronizado, sintonizado, programado para tanto, captará as mensagens irradiadas. A "cultura de massa" é o resultado deste método de comunicação discursiva. A transcodação e irradiação de mensagens resulta em transformação da sua estrutura original. As árvores funcionam linearmente, os media multidimensionalmente. Se admitirmos que a linearidade é a estrutura da história, os media se apresentam como comunicação pós-histórica. São caixas pretas que têm a história por input. E a pós-história por out-put. São programados para transcodarem história em pós-história, eventos em programas. 
Na situação atual as quatro formas de discurso co-existem. Mas os discursos teatrais (escolas, teatros etc), e os discursos piramidais (Estado, partido etc), estão em crise; são anacronismos comunicológicos dificilmente assimiláveis ao tecido da comunicação dominante. O exemplo mais óbvio do problema é o da família, a qual é pirâmide e teatro. Os discursos em árvore continuam se ramificando, e estão acoplados aos discursos anfiteatrais que transcodam suas mensagens. Destarte os mass media estão se tornando fontes preferenciais das informações disponíveis. São eles os que codificam o nosso mundo. Vivemos em clima pós-histórico. 
O discurso teatral programa diálogos circulares. O discurso piramidal visa excluir diálogo de todo tipo. O discurso em árvore programa diálogos circulares para especialistas. O discurso anfiteatral programa diálogos em rede. O teatro exige que se dialogue a mensagem, a fim de produzir informação nova. A pirâmide proíve o diálogo. A árvore exige competência específica, elitária, para se poder participar da elavoração de informação nova. O anfiteatro exige que a informação irradiada seja transformada dialogicamente em mingau amorfo, em "opinião pública", a fim de servir de feedback aos aparelhos emissores. A meta dos diálogos em rede não é a produção de informação nova, mas o feedback. Os aparelhos elaboraram métodos específicos (publimetrias, marketing, pesquisas da opinião, eleições, políticas etc); para recaptarem o feedback. "Democracia" no sentido de diálogo produtor de informação que não seja elitário é possível somente no teatro. Na situação atual, democracia é impossível. A sensação da solidão na massa é consequência disto. A democracia não está no programa.
Pois reformular a ciência em sentido dialógico implica reformular o tecido comunicológico da sociedade. Democratizá-lo. Mais que tarefa epistemológica, é pois tarefa política. Trata-se de tornar ciência politicamente responsável. Transformar em método a consciência que o saber é significativo apenas se for ponto de partida para a ação republicana. Mas, para que tal reformulação possa ser feita, é preicso que a república exista. E a república é o espaço público dos diálogos circulares. Atualmente tal espaço não existe. Todo espaço está ocupado pelas irradiações anfiteatrais e pelo diálogo em rede. Vista internamente, a crise da ciência se apresenta como crise epistemológica, mas vista a partir da sociedade, apresenta-se como crise estrutural: não é possível dialogisar-se o conehcimento, se não há espaço político para tanto. O caráter discursivo e elitariamente dialógico da ciência se deve, estruturalmente, ao seu acoplamento com os meios de comunicação de massa. Para que se faça nova teoria de conhecimento intersubjetivo, é preciso que se disponha de espaço para a intersubjetividade. A crise atual da ciência deve ser, pois, vista noc ontexto da situação comunicológica da atualidade. Enquanto não houver espaço para a política, para dialógos circulares não elitários, a crise da ciência se apresenta insolúvel.
Vilém Flusser. Pós-História. Vinte instantâneos e um modo de usar. Annablume, 2011. p. 74-79 

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