Acho que, aos poucos, começo a sentir o mesmo que o Thomas Rainer sente nas entrevistas em que ele é simplesmente questionado se é ou não nazista, por causa da estética da Nachtmahr. Querem uma solução, querem 1 ou 2: fascista ou não. Consideram impossível haver arte sem haver política, ideologia - no sentido do senso comum, de partidos políticos, de esquerda e direita.
"Como os símbolos nazistas podem ser usados sem ideologia depois da Segunda Guerra Mundial?", perguntaram-me.
Acontece que praticamente nenhum símbolo nazista é puramente criação deste regime. O alfabeto rúnico é de origem dos povos anglo e nórdico, gente que viveu no século XIV. A águia, a coroa de louros e os brasões são símbolos que vêm dos romanos, da era medieval. A suástica, raramente utilizada pelas bandas da música industrial, é um símbolo místico que foi utilizado pelos índios Hopi, pelos astecas, celtas, budistas, gregos, hindus... Não são símbolos nazistas, mas que foram reinterpretados no Terceiro Reich e hoje, pela força e pela proximidade, é mais fácil associar tais ícones com as ações de Hitler que com qualquer outra coisa.
E mesmo que elas estejam sendo utilizadas no sentido de lembrar o nacional socialismo, na arte, tudo deve ser explicado e concluído? Pego alguns exemplos que uso na minha monografia.
Death in June
A banda de neofolk britânica Death in June, criada por Douglas Pearce, veio de um projeto punk esquerdista, o Crisis. Na época, em 1977, eles tocavam em festivais de rock contra o preconceito, porque já havia a sensação de que seu trabalho era simpático à ideologia nacional socialista. No entanto, as referências ao Terceiro Reich realmente existem, na Death in June. O próprio nome da banda relembra Ernst Röhm, comandante do batalhão nazista Sturmabteilung, que foi assassinado pelo regime por conta de sua homossexualidade. Essa inspiração provém da opção sexual de Pearce, que se assume abertamente como gay. Além disso, o grupo mantém como logo a Totenkopf da SS com o número 6 – a caveira significa a morte enquanto o número remetia ao sexto mês do ano, junho. Death in June faz menção à data do assassinato de Röhm.
Acontece que em 2005, o álbum Rose Clouds of Holocaust foi banido na Alemanha, sendo que a obra foi lançada em 1995. O governo alemão procurou Pearce para que ele esclarecesse as suas intenções, por isso, em 2006, ele publicou numa lista de discussão do Yahoo várias explicações sobre a banda, desde letras a símbolos. Junto disso, um desabafo:
Toda arte, seja em forma de música, literatura, pintura etc que se preze deve estar aberta à interpretação. Dessa forma, essa postura também acaba gerando atribuições erradas; às vezes boas, às vezes ruins. Esta é a natureza da arte que desafia ou confronta o consumidor, ou o consumidor em potencial, a ter outra interpretação. (PEARCE, 2006)A mesma coisa aconteceu com o álbum Brown Book, porque a música Horst-Wessel-Lied, que faz parte da tracklist, foi o hino oficial da tropa Sturmabteilung. Há na constitução alemã a proibição de uso de símbolos de organizações inconstitucionais.
Laibach
Há fortes paralelos com os motivos supremacistas de Kazimir Malevich. Cruzes similares eram freqüentemente usadas pelo conceitualista alemão Joseph Beuys, fonte de vários conceitos e motivos da Laibach/NSK. O pôster também lembra as marcas de cruz negra usadas nos veículos e aviões na Segunda Guerra Mundial (MONROE, 2005, p.3).
À esquerda, cartaz de uma exposição da Laibach. À direita, pintura de Magritte, que serviu de inspiração para a banda eslovena
Conforme as associações feitas pelo autor e pelos contemporâneos ao fato, os cartazes foram censurados e a apresentação anunciada foi banida. Mesmo assim, Laibach já mostrava seu impacto conforme a missão de “explorar as relações entre a arte e a ideologia através de diversos meios (incluindo os meios da ‘nação’ e ‘estado’)”. A banda faz parte do movimento artístico Neue Slowenische Kunst (NSK), o qual está conectado à história da Eslovênia, Iugoslávia e de toda Europa. É deste ponto de vista que se deve interpretar os assuntos abordados pelo NSK:
Autoritarismo esloveno, a ênfase na construção da nação através da atividade cultural e a natureza plural da ‘nação’. Os trabalhos da NSK podem ser lidos como um tipo de história espectral dos paradoxos reprimidos e feridas que estruturam a cultura e a identidade eslovenas. Esta é uma história é baseada nas lacunas e quebras, no terrível, no problemático e no inassimilável elemento ao centro da identidade nacional: tudo que as historiografias nacionalistas procuram reprimir ou silenciar (MONROE, 2005, p.17).(...)
Laibach acabou se transformando numa banda “germanizadora” (o que eles chamavam de Germania (germanic mania ou mania germânica). Apesar de a Iugoslávia e outras repúblicas também terem sido ocupadas pelos nazistas e forçadas a mudar seus nomes, apenas a Eslovênia mostrou tensão quanto ao título do grupo. Nos outros países, a preocupação foram os símbolos germânicos, fascistas e que faziam relações com elementos totalitaristas. Isso acabava acendendo a memória de uma guerra traumática:
A germanização permaneceu como um assunto muito mais doloroso e ambíguo para os eslovenos do que para outros (ex-) iugoslavos. As áreas eslovenas ocupadas pelos nazistas foram apenas áreas eslavas inabitadas que foram diretamente incorporadas ao Reich. Os eslovenos foram o único povo que os nazistas sistematicamente tentaram assimilar em vez de simplesmente subordinar. Na mente da geração pós-guerra, tratar da germanização continua sendo traiçoeiro. A emergência de uma contracultura germanizada contesta a identidade eslovena germanizada/iugoslavizada após a guerra (MONROE, 2005, p.157).A banda, ativa até hoje, parece ter “prazer em confundir as expectativas que suscitam – tanto incluindo elementos irônicos e contraditórios quanto desmentindo qualquer ligação possível às tendências que ‘amostram’” (MONROE, 2005, p.49). Mesmo assim, o autor considera que a Laibach possa usar tais objetos como uma forma de condená-los através da própria utilização. Ainda que o grupo estivesse mostrando admiração por eles, esta também seria ambígua, confundindo-se à música dançante. Tudo leva à dúvida, pedindo por uma interpretação que descasque os vários níveis da mensagem passada pelo Neue Slowenische Kunst:
Essas são as qualidades irracionais ou perturbadoras que contradizem a imagem pública do sistema e, se trazidas à superfície, impedem seu funcionamento e perpetuação. [...] Laibach estava antecipando o publicamente reprimido mas ainda forte totalitarismo e os impulsos irracionais presentes dentro do sistema. Do mesmo modo, as intervenções no campo da cultura pop, particularmente as regravações de músicas do Queen, Rolling Stones e outros foram tentativas de ressaltar a interpretação não conhecida do rock como uma forma de entretenimento massivo da mobilização fascista. Ao restaurar essas características reprimidas, Laibach criou um tipo de fixação parasita que questiona tanto o sistema quanto os absolutismos que, consciente ou inconscientemente, estruturam-no, colocando em movimento suas contradições e, como Žižek argumenta, ‘suspendendo sua eficiência’ (MONROE, 2005, p.12).Todos os ícones usados numa composição de difícil assimilação pública acabam gerando rótulos automáticos à banda, tratando-os como fascistas, totalitaristas ou mesmo anarquistas e “terroristas espirituais”. GRZINIC (1991), no entanto, procura reforçar que apesar da escolha estética, trata-se de uma manifestação no domínio da cultura e da arte, mas nunca da política. Essa condição, para a autora, já é suficiente para afastá-los do totalitarismo do Estado e seus aparatos ideológicos.
E por aí vai. Eu poderia listar mais o Boyd Rice, que usa a runa Wolfsangel, que foi utilizada pela Schutzstafel (SS), como a 2ª Divisão Das Reich e a Polizei Division, além de representar a árvore de Yggdrasil que, localizada ao centro do universo, ligava os nove mundos da cosmologia nórdica.
É uma pena que a pergunta que fique seja: mas eles são nazistas ou não?
ERJAVEC, Ales; GRZINIC, Marina; The Eighties in Slovene Art and Culture. Ljubljana: 1991
MONROE, Alexei. Interrogation Machine. Massachusetts: MIT Press, 2005
PEARCE, Douglas. News Death In June: Rose Clouds of Holocaust "banni" en Allemagne - declarations de Douglas P. <www.deathinjune.org/modules/news/article.php?storyid=70>
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