Fila para pegar as pulseiras de entrada para a 14ª edição da Wave Gotik Treffen, em maio de 2005
A primeira edição do encontro foi realizada em 1987, em Potsdam, porém as leis da República Democrática Alemã indicavam ilegalidade do festival, o que resultou uma baixa visitação (algumas centenas de pessoas). Mas depois de 1992, com a reunificação da Alemanha, o evento passou a acontecer em Leipzig, no clube Eiskeller. A partir daí, a adesão foi aumentando até que, em 2000, foram contabilizados aproximadamente 25 mil visitantes.
Um dos pontos que mais me chama atenção quanto ao Wave Gotik Treffen é a diversidade de subculturas de uma mesma raiz "rocker" ou "dark" que se pode constatar - há quem prefira se referir às variantes da subcultura gótica, mas eu prefiro deixar mais abrangente. Isso é melhor verificado justamente no clipe da UNI_FORM que, aliás, não é uma banda que se equiparia às que tocam no festival. O som dos portugueses me lembrou muito mais a Interpol, ou seja, ela está mais próxima do indie rock.
As cenas foram gravadas na edição da Wave Gotik Treffen de 2011 e, como havia comentado, dá para perceber nesse vídeo a grande diversidade no visual dos visitantes. O que nos convém citar aqui são justamente aqueles que aderem a um estilo mais militar, no caso, muito próximo à estética dos uniformes nazistas.
Este visitante veste um uniforme muito parecido com aquele usado pela Schutzstaffel. Mas não dá para saber se ele está usando a suástica, apesar de haver uma águia no topo do quepe e um círculo onde a ave se sustenta (onde originalmente se situa a suástica)
Réplica de quepe da Allgemeine SS, a mais numerosa vertente da Schutzstaffel
Outro casal que adotou um estilo militar, com fardas bastante parecidas com o estilo nazista, mas adaptadas com itens distintos, como o corset feminino, por exemplo. A moça, inclusive, parece estar usando o mesmo quepe citado acima, enquanto seu acompanhante parece propôr mais a estética da Wehrmacht
Foto da Wehrmacht, tirada em 1942
Outro visitante de uniforme, só que esse mais próximo de algo vestido por policiais ou seguranças, por exemplo. Se alguém souber melhor a referência, por favor, deixe nos comentários
Certo, mas qual seria a utilidade ou o motivo de essas pessoas estarem vestidas assim num evento de música? Quem acompanhou as postagens ou teve oportunidade de conferir minha monografia Kunst ist Krieg, trata-se de uma prática da subcultura rivethead que, segundo WOODS (2007), começou a partir dos anos 1980, com a banda belga Front 242. Com eles, a cena passou a ter um visual mais militarizado, composto por itens como coturno, coletes, quepes, roupas camufladas, jaquetas militares etc. Já AMARAL (2006) vê o rivethead como um desdobramento da subcultura cybergoth - lembrando que alguns puristas do EBM (Electronic Body Music, gênero inaugurado pela Front 242) não concordam que haja uma ligação entre o gótico e a música industrial.
Em seu livro Visões Perigosas: Uma arquegenealogia do cyberpunk, a autora explica que o rivethead segue o mesmo niilismo em relação à tecnologia visto nos cybergoths, influenciados pela lógica do gênero cyberpunk da ficção científica - por isso, a EBM tem uma sonoridade pesada, com batidas "retas" e "secas". Assim como os hackers, tal qual aponta Paul Edwards, em Cyberpunks in cyberspace: the politics of subjetivity in the computer age (1996), os rivetheads também "refletem uma história envolvendo novas formas de guerra, militarismo, um sistema tecnológico invasivo, e o capitalismo global e a sua cultura" (apud AMARAL, 2006, p.154).
Isto é, os rivetheads têm como resposta ao mundo contemporâneo (ou pós-moderno) uma agressividade belicista que se conecta à estética militar. Daí até chegar aos uniformes nazistas é um passo que tem a ver com a estética destes e por seu valor de choque (shock value).
Nos anos 1980, a cena gótica teve seu habitus abalado pela cantora inglesa Siouxsie Sioux (Siouxsie and the Banshees), que trouxe de volta a suástica usada por Sid Vicious (Sex Pistols), mas numa releitura fetichista e sadomasoquista, inspirando uma "geração de mulheres com suas roupas sexualizadas" (ISSITT, 2002, p.9). Mais tarde, nos anos 1990, o fetichismo seguiu dissolvido na subcultura, deslocando o tabu do nazismo acompanhado de sensualidade (ver SONTAG, 1974) para se tornar parte da moda gótica. E isso é claro, tanto pelo que vemos no vídeo da Wave Gotik Treffen quanto pelas fotos que publiquei no ano passado, tiradas na maior festa gótica austríaca, a Overdose.
Debbie Juvenile, Siouxsie Sioux e Steve Severin
Isto é, Siouxsie "começou sua carreira como uma decana gótica na cena da Sex Pistols, ajudou a popularizar uma estética caracterizada por uma palidez mórbida, pela maquiagem escura, a decadência da era Weimar e o Nazi chic" (GOODLAD e BIBBY, 2007, p.1). Ou seja, a cantora combinou tanto os elementos malignos quanto os eróticos encontrados na subcultura gótica ou na cena sadomasoquista (SONTAG, 1974). Afinal, a subcultura gótica é caracterizada pelo afeto e admiração pela obscuridade, seja ela focada na era medieval ou em tempos mais recentes - vampiros, bruxas e demônios são alguns dos seres fantásticos e malignos que permeiam o imaginário gótico. Siouxsie só reforçou essa tendência ao vestir uma faixa vermelha com a suástica, transformando um símbolo preenchido de tabus (porque justificadamente causa revolta e repulsa), que é uma das representações contemporâneas do mal, e o inseriu num contexto de beleza e até de ironia ao se posicionar ingenuamente, como na foto acima.
Duas cenas em que Siouxsie evoca a sensualidade e erotismo unidos ao militarismo, sendo que na segunda foto (à direita) ela usa a suástica e na primeira (à esquerda) ela faz remitência ao filme Der Nachtportier (1974), de Liliana Cavani
Com o passar do tempo, no entanto, o que outrora Siouxsie usou como protesto ou ironia perdeu, em parte, a sua função para se transformar num item cosmético e fashion. Assim como AMARAL (2006) explica, os rivetheads e os góticos fazem parte de uma geração de subculturas pós-punk, ou seja, poderiam ser classificadas como pós-subculturas, como explica David Muggleton e Rupert Weinzierl em The post-subcultures reader (2004), porque ambas estão muito mais conectadas a uma identidade e a um estilo do que a uma ideologia e resistência que parecia haver nos anos 1970 e 1980.
"Todas as subculturas surgidas depois do punk (...) possuem essa relação de identificação estética demarcadas de maneira muito intensa, enquanto as questões de cunho político/ideológico (quando existem) e de resistência e choque a uma cultura dominante/mainstream parecem estar relegadas a um segundo plano" (AMARAL, 2006, p.151).
Então, quando vemos tais pessoas vestidas em fardas em eventos góticos, tal como a Wave Gotik Treffen, é possível pensar que elas estejam apenas reforçando a qualidade estética de tal indumentária e não a carga simbólica que esta carrega. Trata-se de um costume pós-moderno, o de esvaziamento dos símbolos, sem que, no entanto, isto indique uma alienação histórica e cultural por parte dos indivíduos. Apesar de a prática indubitavelmente ser perigosa aos olhos desavisados, subculturas sempre estiveram no limiar do estranhamento e da marginalização - daí subcultura, não por inferioridade, mas por se pôr fora do mainstream.
Porém, não deixa de ser uma questão a ser debatida e criticada: como se dá esse esvaziamento simbólico em prol da estética pura? Como é possível alguém vestir o uniforme daqueles que mataram milhares há menos de 60 anos? O fato é que a suástica e outros símbolos referentes ao regime nazista, como as runas, são proibidos por lei em países como a Alemanha e a Áustria, mesmo quando usados em protesto. Mas entende-se que aí há, de certa forma, um uso cosmético das fardas e dos símbolos, como se as pessoas se apoderassem do poder oficialmente segurado por outros, transferindo-os para si e assim ganhando uma persona de autoridade e reconhecimento (HANLEY, 2004).
Referências bibliográficas
AMARAL, Adriana (2006). Visões Perigosas: Uma arquegenealogia do cyberpunk. Porto Alegre: Editora Sulina
GOODLAD, Lauren M. E; BIBBY, Michael (2007). Goth: Undead Subculture. Duke University Press: Durham
HANLEY, Jason J (2004). "The Land of Rape and Honey": The Use of World War II Propaganda in the Music Videos of Ministry and Laibach. American Music, vol. 22, no. 1 (Spring), pp.158-175
ISSITT, Micah (2011). Goths: A Guide to an American Subculture. ABC-CLIO
SONTAG, Susan (1974). Fascinating Fascism.
WOODS, Bret D (2007). Industrial Music for Industrial People: The History and Development of an Underground Genre. The Florida State University, College of Music
PS: Obrigada pela dica de post, Cid!
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