domingo, 17 de junho de 2012

Um terrível amor pela guerra


James Hillman (1926 – 2011) foi um psicólogo americano pós-junguiano, responsável pela criação de uma nova forma de psicologia, a arquetípica. Com uma considerável obra escrita e publicada, Hillman é autor do livro "A terrible love of war" (2004), no qual ele busca explicar em quatro grandes capítulos as seguintes temáticas: "A guerra é normal", "A guerra é inumana", "A guerra é sublime", "A religião é a guerra". Isto é, ele traz à tona a presença da guerra no cotidiano e na história do homem, a partir de um viés mitológico e psicológico, assim como fez Jung, no ensaio Wotan, sobre o nazismo. Ainda não o livro, mas uma parte dele está disponível em espanhol, neste link, e a seguir disponibilizo a tradução de uma resenha escrita por Dennis Patrick Slattery.


Este novo livro, com autoria de um dos mais prolíficos (30 livros), inspiradores e inquietantes psicólogos escritores atuais, irá provavelmente servir de um chamado às armas para aqueles indivíduos ou grupos que aceitaram idéias simples e convencionais sobre a presença da guerra na história da humanidade. Em vez de repetir a fácil conversa política e sociológica sobre a gênese da guerra e suas intenções, James Hillman prefere mover verticalmente, diretamente à mitologia, à religião e aos porões da alma, de modo a descobrir os mais básicos impulsos à guerra, os quais, ele acredita, serem uma constante e até mesmo algo normal na história da humanidade. Escute a linguagem da mídia, com seu léxico de guerra, batalha, luta, competição, vencer, perdedor - todas essas palavras apontando para a conquista.

Ele começa citando o Êxodo na epígrafe de seu livro: "O Senhor é um homem de guerra. Senhor é Seu nome" (15:3). Ele então divide sua exploração da guerra em quatro capítulos: 1. A guerra é normal; 2. A guerra é desumano; 3. A guerra é sublime; 4. A religião é Guerra. As treze páginas de bibliografia reúnem vozes antigas e modernas sobre guerra, violência, batalhas, derrotas, heróis e mitologias da guerra, freqüentes na figura de Ares (grego) e Marte (romano). Que lugar, pergunta Hillman, tem a divindade no chamado à guerra e em sua justificativa? Nós, ele indica ao fim desse freqüentemente chocante e desconcertante estudo, nem ainda começamos a despertar o complexo e matizado poder do deus da guerra, a ponto de nós continuarmos como uma nação que se sente melhor perambulando pela névoa dos propósitos e presença da guerra do que aprofundar nossos conhecimentos dos valores que temos, conscientemente ou não, os quais põem a presença da guerra como uma ocorrência normal. Não é estranho ou peculiar, mas o cotidiano é a enérgica face da guerra diante de nós. Como nossos líderes, ou ainda nós mesmos, entendem a guerra se dá muitas vezes através de um compromisso imagético falho. Segurar-nos e manter-nos reféns do poderio e da presença da guerra deriva diretamente de nossas crenças - religiosa, política, pessoal, persistente - que nos protege da guerra com a mesma ferocidade com a qual nós disfarçamos esse terrível e destrutivo impulso dos outros.

Hillman constata ao fim do livro que uma grande intenção de sua escrita sobre a guerra é "expor a desconhecida força de Ares/Marte no Cristianismo desde sua origem". Ele acredita que o Cristianismo esconde a si mesmo numa hipocrisia sobre ambas guerra e paz, e que nada menos que um revisionismo das suposições cristãs sobre essas forças irá nos permitir imaginar guerra e paz de uma forma libertadora. Controverso! Você aposta, assim como em qualquer outro livro sério sobre a forte face da guerra no espelho das culturas mundiais deveria ser. Hillman deseja expor essa contradição fundamental que, enquanto nós fingimos procurar paz como uma nação, nós percorremos o mundo com grandes varas, como se fosse buscando briga. Nosso compromisso hostil com o mundo num todo, nossas próprias duras estatísticas sobre violência doméstica, deveriam fazer qualquer indivíduo sério questionar o paradoxo, senão a ironia deslavada, dessas opiniões controversas.

O mais fascinante e provocativo capítulo, para mim, é o quarto: "A religião é Guerra". Ele me levou aperguntar se a Guerra, em si, não é uma religião, uma forma de acreditar que o conflito, a violência, o ódio e o preconceito são a final solução para o desacordo. Esse capítulo é particularmente notável em sua distinção entre religião e mito: "Deuses míticos diferem daqueles da religião, porque mitos são histórias e seus deuses são 'um tipo de existência', nas palavras de Carl Kerenyi". Histórias místicas, no fim das contas, não foram feitas para serem tomadas literalmente, mas literariamente, ou seja, elas não ocorreram historicamente, mas imaginariamente. Mitos não nos pede para que acreditemos neles, assim como a religião faz em suas formas codificadas de fé: "A religião, em contraponto, codifica uma história particular como uma revelação de uma palavra de um deus particular, de verdade imortal à história humana, em um específico lugar e num específico momento" ... e portanto "a religião lê o mundo literalmente".

Quando a guerra é invocada como uma solução, deus, deusa, divindades, o transcendente é invocado como o veículo que serve simplesmente como uma justificação para o ato da guerra. Aqui, algumas conexões entre violência e o sagrado, entre amor e guerra, são inevitáveis. Hillman atenciosamente prova o relacionamento entre o amor e a guerra, Afrodite e Ares, como estranhos e exóticos parceiros de cama; ele pede para que nós retornemos e recuperemos os mitos antigos da Grécia e de Roma como formas de imaginar novamente as empoladas, persistentes e sedadas razões por trás do engajamento bélico, de um modo simples e rápido de se pensar complexamente.

Nossa metodologia é enviesada, como acredita Hillman: "A guerra não é um produto da razão e não produz razão". Nota para a ausência de armas de destruição em massa no Iraque. Não importa que elas nunca tenham sido encontradas. Em vez disso, nós devemos, assim como Hillman sugere, olhar para alguns dos atributos que caracterizam a psique americana, especialmente aquelas não tão presentes na atualidade: "repressão, limitação, prudência". Um dos deuses prevalescentes, ele diz, é o deus "Temeridade - Ágil, Rápido, Instantâneo, Relâmpago, Versátil". Seu melhor exemplo da perversidade pernetrante de tal deus surge nessa citação: "Na verdade, a guerra contra o Iraque começou realmente quando o governo dos Estados Unidos a declarou concluída".


O que eu achei de mais valoroso ao ler esse meditativo, forte, irreverente e violentamente relevante livro, escrito por um dos nossos melhores pensadores iconoclastas da atualidade, é que eu senti, finalmente, que algo do sombrio se sobressai à nossa própria inocência, assim como uma pessoa é tirada de seu sono com um jato de água muito gelada. Nós, cada um de nós, estamos pagando por essa guerra atual; nós temos o dever moral de prestar atenção a essas intenções míticas e religiosas.

Um comentário:

  1. Gostei da referência e resolvi procurar o livro, agora estou lendo e me apaixonei pelo texto.

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