sábado, 31 de março de 2012

Wotan, de Carl Gustav Jung

Recentemente, na aula de Culturologia de Flusser, no mestrado, o professor mencionou sobre a questão da sombra concebida pelo psiquiatra suíço Carl Gustav Jung. Fiquei bastante curiosa em relação a isso, porque pode me ajudar muito durante a pesquisa sobre a obra de Gottfried Helnwein, que é toda composta por um jogo forte de luz e sombra - sendo esta mais presente do que a outra. Acabei achando, então, um texto de Jung sobre o nazismo, o qual analisa o fenômeno de um ponto de vista mítico-psicológico, relacionando o evento com o re-despertar de um deus germânico chamado Wotan (uma entidade com características entre Dionísio, Mercúrio, Kronos e Hermes).

Nesse post, deixo apenas a tradução rápida que fiz do texto "Wotan", originalmente publicado em março de 1936, para em uma postagem futura analisar melhor o conteúdo do texto. O artigo, em inglês, pode ser lido aqui.


terça-feira, 13 de março de 2012

Lei de Godwin e a banalização do nazismo

Existe um conceito conhecido como "Lei de Godwin", o qual diz que "à medida que cresce uma discussão online, a probabilidade de surgir uma comparação envolvendo Adolf Hitler ou nazismo aproxima-se de um (100%)". A idéia foi elaborada em 1990 por Mike Godwin, um advogado americano que observou um certo comportamento padronizado na rede, o qual acabava por desenvolver um círculo vicioso em que discussões sobre política e religião, principalmente, caíam sempre no mesmo lugar-comum das comparações com o nazismo (ou com Adolf Hitler, em si) e fascismo.

Eu ousaria dizer que esse tipo de lógica se estenderia mesmo para as discussões fora do âmbito virtual, já que a rede é uma extensão de nós mesmos (seguindo a lógica Understanding Media de McLuhan). Portanto, é bem provável que os debatedores que chegassem à essa conclusão num fórum ou numa lista de discussão também o fariam se frente-a-frente com outros interlocutores.

Antes de dizer o que gostaria de ressaltar nesse tema, irei reproduzir a minha tradução do texto de Mike Godwin, de 1994, publicado no site da revista Wired, chamado "Meme, Counter-meme":


Era 1990 quando iniciei um projeto de engenharia memética. Decidi que o meme da comparação nazista tinha se espalhado em incontáveis grupos da Usenet, em muitas conferências no Well e em todos os BBS que eu frequentava. Participantes ou idéias sendo tidos como "similares aos nazistas" ou "ao estilo de Hitler" eram um evento recorrente e previsível. Era o tipo de coisa que fazia você pensar como debates sempre ocorreram sem um martelo retórico.
Nem todo mundo via a comparação aos nazistas como um "meme" - a maioria das pessoas na rede, assim como em qualquer outro lugar, nunca havia ouvido falar sobre "memes" ou "memética". Mas agora que nós estamos vivendo em uma crescente cultura da informação, é tempo para que isso mude. E é tempo para que os usuários da rede façam um esforço consciente em controlar o tipo de memes que eles criam ou circulam. 
Um "meme", obviamente, é uma idéia que funciona de uma maneira muito parecida como um gene ou um vírus age no corpo. E uma idéia infecciosa (chame isso de "meme viral") pode saltar de uma mente para a outra, assim como muitos vírus saltam de um corpo para outro. 
Quando um meme faz isso, ele pode cristalizar toda uma escola de pensamentos. Pegue o meme do "buraco negro", por exemplo. Assim como o físico Brandon Carter comentou no livro A Brief History of Time: A Reader's Companion, de Stephen Hawkings: "As coisas mudaram dramaticamente quando John Wheeler inventou o termo [buraco negro]... Todos o adotaram, e desde então, pessoas ao redor do mundo, em Moscou, na América, na Inglaterra e em todo lugar podiam saber que estavam falando da mesma coisa". Uma vez que o meme do "buraco negro" se tornou um lugar-comum, ele se transformou em uma fonte útil de metáforas para tudo, desde o analfabetismo ao deficit. 
Em 1990, eu percebi algo similar acontecendo com o meme da comparação nazista. Obviamente, há temas óbvios nos quais essa comparação é recorrida. Em discussões sobre armas e sobre a Segunda Emenda, por exemplo, os defensores do controle de armas são periodicamente lembrados de que Hitler baniu o porte de armas pessoais. E os debates sobre controle de natalidade são frequentemente marcados pela insistência dos pró-vida, que dizem que aqueles que são a favor do aborto estão defendendo um assassinato em massa pior do que os nazistas fizeram nos campos de concentração. E em qualquer grupo de discussão no qual a censura é discutida, alguém inevitavelmente levanta o espectro da queima de livros cometida pelos nazistas. 
Mas o meme da comparação nazista pululou em outros casos também - em discussões gerais sobre leis no misc.legal, por exemplo, ou na conferência EFF no Well. Libertários ferrenhos estavam prontos para rotular qualquer regulamentação governamental como um princípio nazista. Era uma trivialização que eu achei tão ilógica (Michael Dukakis como um nazista? Por favor!) quanto ofensiva (as milhares de vítimas dos campos de concentração não morreram para se tornar uma alegoria útil aos usuários da net.blowhard). 
Então, eu resolvi conduzir um experimento - construir um contra-meme projetado para fazer os participantes das discussões verem como eles estavam agindo como vetores de um meme particularmente bobo e ofensivo... e talvez para reduzir a superficialidade das comparações nazistas. 
Eu desensolvi a Lei de Godlaw das Analogias Nazistas: à medida que cresce uma discussão online, a probabilidade de surgir uma comparação envolvendo Adolf Hitler ou nazismo aproxima-se de um. 
Implantei a Lei de Godwin em alguns grupos ou tópicos nos quais eu vi referências gratuitas ao nazismo. Logo, para minha surpresa, outras pessoas a estavam citando - o contra-meme estava reproduzindo por si mesmo! E ele se mutou como um meme, gerando correlatos como os seguintes: 
- Correlato de Newman feito por Gordon, de acordo com a Lei de Godwin: o libertarianismo (pró, contra e lutas internas de facções) é o tópico de discussão primordial do net.news. Em qualquer momento no qual o debate se dirigir para qualquer outro lugar, ele deve eventualmente voltar ao seu motor inicial.
- Correlato de Morgan à Lei de Godwin: assim que uma comparação ocorrer, alguém irá começar um tópico de discussão sobre nazismo no alt.censorship. 
- Correlato de Sircar: se as discussões da Usenet mencionam homossexualidade ou Heinlein, nazistas ou Hitler serão citados em três dias. 
- Correlato de Van der Leun: conforme a conectividade global se desenvolve, a probabilidade de verdadeiros nazistas estarem na rede se aproxima de um. 
- Paradoxo de Miller: conforme a rede evolui, o número de comparações nazistas não antecipadas pela citação da Lei de Godwin converge ao zero. 
Em tempo, discussões são fomentadas nos grupos e para mostrar uma menor incidência do meme da comparação nazista. E o contra-meme se mutou de formas ainda mais úteis. (Assim como o autor de Cuckoo's Egg, Cliff Stoll, disse-me uma vez: "Lei de Godwin? Não é aquela lei que diz que uma vez que uma discussão chega à comparação com nazistas ou Hitler, sua utilidade está acabada?"). De acordo com meus padrões (admitidamente baixos), o experimento foi um sucesso.

Pois é, mas até hoje, 22 anos após a concepção da Lei de Godwin ou 18 anos após a publicação desse texto, ainda vemos uma proliferação de argumentos que convergem à comparação nazista (ou ao meme desta). Prefiro não citar ou linkar exemplos aqui, mas acredito que os leitores tenham vivenciado ou observado uma discussão que tomasse esse rumo - ainda mais em tempos atuais em que temas como a homossexualidade, o feminismo, o aborto, a eutanásia, os direitos dos ciclistas, o vegetarianismo, o dualismo entre partidos políticos ou ideologias de esquerda e direita etc continuam vivos e fortes, não é difícil encontrar qualquer artigo, tweet ou compartilhamento no Facebook e outras redes sociais que traga um parecer sobre estes ou outros temas do ponto de vista de algo feito pelos nazistas.

Enquanto o autor de tal manifestação pretende reforçar a gravidade de algo, emprestando o valor semântico e simbólico do nazismo e de seus crimes, ele acaba muitas vezes não conscientizando o público-alvo, mas banalizando a discussão ao nível do meme do YouTube com o filme A Queda - sobre o qual Mark Dery escreveu em “Endtime for Hitler: On the Downfall of the Downfall Parodies" (2010).

Por isso Godwin propôs um contra-meme para tentar parar essa trivialização desenfreada, pedindo para que as comparações fossem feitas de maneira mais consciente e menos preocupadas apenas com o valor de choque. Mas, infelizmente, o paradoxo de Miller, um dos correlatos que Godwin encontrou, segue mais forte: "conforme a rede evolui, o número de comparações nazistas não antecipadas pela citação da Lei de Godwin converge ao zero" - e a gravidade do evento Nazismo se perde na "nulidade" do riso, do desprezo ou da inutilidade (como disse Stoll a Godwin).

segunda-feira, 5 de março de 2012

Wave Gotik Treffen e uniformes nazistas

A banda portuguesa UNI_FORM lançou no ano passado o clipe da música "Fragile" usando cenas gravadas no Wave Gotik Treffen, festival anual realizado em Leipzig, na Alemanha. O evento dura quatro dias e reúne mais de 150 bandas do gênero gothic metal, EBM, darkwave, industrial, neofolk, experimental, noise, gothic rock, punk e outros.

Fila para pegar as pulseiras de entrada para a 14ª edição da Wave Gotik Treffen, em maio de 2005

A primeira edição do encontro foi realizada em 1987, em Potsdam, porém as leis da República Democrática Alemã indicavam ilegalidade do festival, o que resultou uma baixa visitação (algumas centenas de pessoas). Mas depois de 1992, com a reunificação da Alemanha, o evento passou a acontecer em Leipzig, no clube Eiskeller. A partir daí, a adesão foi aumentando até que, em 2000, foram contabilizados aproximadamente 25 mil visitantes. 

Um dos pontos que mais me chama atenção quanto ao Wave Gotik Treffen é a diversidade de subculturas de uma mesma raiz "rocker" ou "dark" que se pode constatar - há quem prefira se referir às variantes da subcultura gótica, mas eu prefiro deixar mais abrangente. Isso é melhor verificado justamente no clipe da UNI_FORM que, aliás, não é uma banda que se equiparia às que tocam no festival. O som dos portugueses me lembrou muito mais a Interpol, ou seja, ela está mais próxima do indie rock.


As cenas foram gravadas na edição da Wave Gotik Treffen de 2011 e, como havia comentado, dá para perceber nesse vídeo a grande diversidade no visual dos visitantes. O que nos convém citar aqui são justamente aqueles que aderem a um estilo mais militar, no caso, muito próximo à estética dos uniformes nazistas.

Este visitante veste um uniforme muito parecido com aquele usado pela Schutzstaffel. Mas não dá para saber se ele está usando a suástica, apesar de haver uma águia no topo do quepe e um círculo onde a ave se sustenta (onde originalmente se situa a suástica)

Réplica de quepe da Allgemeine SS, a mais numerosa vertente da Schutzstaffel

Outro casal que adotou um estilo militar, com fardas bastante parecidas com o estilo nazista, mas adaptadas  com itens distintos, como o corset feminino, por exemplo. A moça, inclusive, parece estar usando o mesmo quepe citado acima, enquanto seu acompanhante parece propôr mais a estética da Wehrmacht

Foto da Wehrmacht, tirada em 1942

Outro visitante de uniforme, só que esse mais próximo de algo vestido por policiais ou seguranças, por exemplo. Se alguém souber melhor a referência, por favor, deixe nos comentários

Certo, mas qual seria a utilidade ou o motivo de essas pessoas estarem vestidas assim num evento de música? Quem acompanhou as postagens ou teve oportunidade de conferir minha monografia Kunst ist Krieg, trata-se de uma prática da subcultura rivethead que, segundo WOODS (2007), começou a partir dos anos 1980, com a banda belga Front 242. Com eles, a cena passou a ter um visual mais militarizado, composto por itens como coturno, coletes, quepes, roupas camufladas, jaquetas militares etc. Já AMARAL (2006) vê o rivethead como um desdobramento da subcultura cybergoth - lembrando que alguns puristas do EBM (Electronic Body Music, gênero inaugurado pela Front 242) não concordam que haja uma ligação entre o gótico e a música industrial.

Em seu livro Visões Perigosas: Uma arquegenealogia do cyberpunk, a autora explica que o rivethead segue o mesmo niilismo em relação à tecnologia visto nos cybergoths, influenciados pela lógica do gênero cyberpunk da ficção científica - por isso, a EBM tem uma sonoridade pesada, com batidas "retas" e "secas". Assim como os hackers, tal qual aponta Paul Edwards, em Cyberpunks in cyberspace: the politics of subjetivity in the computer age (1996), os rivetheads também "refletem uma história envolvendo novas formas de guerra, militarismo, um sistema tecnológico invasivo, e o capitalismo global e a sua cultura" (apud AMARAL, 2006, p.154).

Isto é, os rivetheads têm como resposta ao mundo contemporâneo (ou pós-moderno) uma agressividade belicista que se conecta à estética militar. Daí até chegar aos uniformes nazistas é um passo que tem a ver com a estética destes e por seu valor de choque (shock value). 

Nos anos 1980, a cena gótica teve seu habitus abalado pela cantora inglesa Siouxsie Sioux (Siouxsie and the Banshees), que trouxe de volta a suástica usada por Sid Vicious (Sex Pistols), mas numa releitura fetichista e sadomasoquista, inspirando uma "geração de mulheres com suas roupas sexualizadas" (ISSITT, 2002, p.9). Mais tarde, nos anos 1990, o fetichismo seguiu dissolvido na subcultura, deslocando o tabu do nazismo acompanhado de sensualidade (ver SONTAG, 1974) para se tornar parte da moda gótica. E isso é claro, tanto pelo que vemos no vídeo da Wave Gotik Treffen quanto pelas fotos que publiquei no ano passado, tiradas na maior festa gótica austríaca, a Overdose.

Debbie Juvenile, Siouxsie Sioux e Steve Severin

Isto é, Siouxsie "começou sua carreira como uma decana gótica na cena da Sex Pistols, ajudou a popularizar uma estética caracterizada por uma palidez mórbida, pela maquiagem escura, a decadência da era Weimar e o Nazi chic" (GOODLAD e BIBBY, 2007, p.1). Ou seja, a cantora combinou tanto os elementos malignos quanto os eróticos encontrados na subcultura gótica ou na cena sadomasoquista (SONTAG, 1974). Afinal, a subcultura gótica é caracterizada pelo afeto e admiração pela obscuridade, seja ela focada na era medieval ou em tempos mais recentes - vampiros, bruxas e demônios são alguns dos seres fantásticos e malignos que permeiam o imaginário gótico. Siouxsie só reforçou essa tendência ao vestir uma faixa vermelha com a suástica, transformando um símbolo preenchido de tabus (porque justificadamente causa revolta e repulsa), que é uma das representações contemporâneas do mal, e o inseriu num contexto de beleza e até de ironia ao se posicionar ingenuamente, como na foto acima.


Duas cenas em que Siouxsie evoca a sensualidade e erotismo unidos ao militarismo, sendo que na segunda foto (à direita) ela usa a suástica e na primeira (à esquerda) ela faz remitência ao filme Der Nachtportier (1974), de Liliana Cavani

Com o passar do tempo, no entanto, o que outrora Siouxsie usou como protesto ou ironia perdeu, em parte, a sua função para se transformar num item cosmético e fashion. Assim como AMARAL (2006) explica, os rivetheads e os góticos fazem parte de uma geração de subculturas pós-punk, ou seja, poderiam ser classificadas como pós-subculturas, como explica David Muggleton e Rupert Weinzierl em The post-subcultures reader (2004), porque ambas estão muito mais conectadas a uma identidade e a um estilo do que a uma ideologia e resistência que parecia haver nos anos 1970 e 1980.

"Todas as subculturas surgidas depois do punk (...) possuem essa relação de identificação estética demarcadas de maneira muito intensa, enquanto as questões de cunho político/ideológico (quando existem) e de resistência e choque a uma cultura dominante/mainstream parecem estar relegadas a um segundo plano" (AMARAL, 2006, p.151).

Então, quando vemos tais pessoas vestidas em fardas em eventos góticos, tal como a Wave Gotik Treffen, é possível pensar que elas estejam apenas reforçando a qualidade estética de tal indumentária e não a carga simbólica que esta carrega. Trata-se de um costume pós-moderno, o de esvaziamento dos símbolos, sem que, no entanto, isto indique uma alienação histórica e cultural por parte dos indivíduos. Apesar de a prática indubitavelmente ser perigosa aos olhos desavisados, subculturas sempre estiveram no limiar do estranhamento e da marginalização - daí subcultura, não por inferioridade, mas por se pôr fora do mainstream. 

Porém, não deixa de ser uma questão a ser debatida e criticada: como se dá esse esvaziamento simbólico em prol da estética pura? Como é possível alguém vestir o uniforme daqueles que mataram milhares há menos de 60 anos? O fato é que a suástica e outros símbolos referentes ao regime nazista, como as runas, são proibidos por lei em países como a Alemanha e a Áustria, mesmo quando usados em protesto. Mas entende-se que aí há, de certa forma, um uso cosmético das fardas e dos símbolos, como se as pessoas se apoderassem do poder oficialmente segurado por outros, transferindo-os para si e assim ganhando uma persona de autoridade e reconhecimento (HANLEY, 2004).

Referências bibliográficas

AMARAL, Adriana (2006). Visões Perigosas: Uma arquegenealogia do cyberpunk. Porto Alegre: Editora Sulina

GOODLAD, Lauren M. E; BIBBY, Michael (2007). Goth: Undead Subculture. Duke University Press: Durham

HANLEY, Jason J (2004). "The Land of Rape and Honey": The Use of World War II Propaganda in the Music Videos of Ministry and Laibach. American Music, vol. 22, no. 1 (Spring), pp.158-175

ISSITT, Micah (2011). Goths: A Guide to an American Subculture. ABC-CLIO

SONTAG, Susan (1974). Fascinating Fascism.

WOODS, Bret D (2007). Industrial Music for Industrial People: The History and Development of an Underground Genre. The Florida State University, College of Music



PS: Obrigada pela dica de post, Cid!

domingo, 4 de março de 2012

Nosso Programa

"Na política trata-se de liberdade, de emancipação do homem dos motivos de outros homens. Na política, portanto, o único pensamento apropriado é o finalístico. O desafio representado pela visão programática é pois a necessidade deaprendermos a pensar a-politicamente, se quisermos preservar a liberdade. Isto é paradoxo. Porque se continuarmos a pensar politicamente, finalisticamente, se continuarmos a procurar por motivos por detrás dos programas que nos regem, cairemos fatalmente vítimas da programação absurda, a qual prevê precisamente tais tentativas de "desmitização" como uma de suas virtualidades.

Podemos observar sempre melhor como o comportamento do indivíduo e da sociedade vai sendo programado por diferentes aparelhos. E podemos observar, além disto, o comportamento dos "instrumentos inteligentes", dos quais conhecermos os programas, e nos quais reconhecemos nosso próprio comportamento. (...) Há programadores. Mas a despeito disto: se persistirmos em pensar finalisticamente, se continuarmos a procurar desencobrir os programadores por detrás dos programas, e desmistificar seus motivos, perdermos de vista o que é essencial na cena. (...) Porque o essencial na cena é o fato que os programas, embora projetados por programadores, se autonomizam. Os aparelhos funcionam sempre mais independentemente dos motivos dos seus programadores. (...) A própria programação humana vai sendo programada por aparelhos. Por certo: determinados programadores se julgam, subjetivamente, "donos" das decisões e dos aparelhos. Mas, na realidade, não passam de funcionários programados para assim se julgarem. (...) Ambos, programadores e críticos, vão sendo recuperados pelos aparelhos. A liberdade morrerá se continuarmos a pensar politicamente, e a agir em função de tal pensamento.

Não devemos nem antropomorfizar nem objetivar os aparelhos. Devemos captá-los em sua concreticidade cretina de um funcionamento programado, absurdo. A fim de podermos compreendê-los e destarte inseri-los em metaprogramas. O paradoxo é que tais metaprogramas são jogos igualmente absurdos. Em suma: o que devemos aprender é a assumir o absurdo, se quisermos emancipar-nos do funcionamento. A liberdade é concebível apenas enquanto jogo do absurdo com aparelhos. Enquanto jogo com programas. É concebível apenas depois de termos assumido a política, e a existência humana em geral, enquanto jogo absurdo. Depende de se aprenderemos em tempo de sermos tais jogadores, se continuarmos a sermos "homens", ou se passaremos a ser robôs: se seremos jogadores ou peças do jogo."

Trecho do livro Pós-História, de Vilém Flusser. Capítulo "Nosso Programa"