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terça-feira, 1 de setembro de 2015

Kafka, Deus e o Absurdo


Naftali Rakuzin
Com esta pergunta, que devo deixar em aberto, aventuro-me a uma aproximação da mensagem propriamente dita da obra de Kafka.
Essa mensagem, tal qual aparece pelo prisma das duas dificuldades mencionadas. Distorcida e duvidosa portanto, diz respeito à situação do homem em face das forças que o governam, à situação dessas forças em face do homem, e diz respeito ainda a essas forças em si. Se tentarmos reduzir essa mensagem a umas poucas frases, coisa com a qual Kafka evidentemente nunca concordaria, chegaríamos aproximadamente ao resultado seguinte: o homem vive em estado de culpa permanente em face das forças superiores. Sabe da sua culpa e da justiça de qualquer castigo que essas forças proventura lhe imporão, mas não sabe da natureza dessa culpa. Procura o contato com essas forças, não para pedir perdão, mas para esclarecer a sua culpa, para "saber". Ewssa procura tem excelentes possibilidades de êxito, já que as forças superiores são, aparentemente, muito próximas.
Entretanto, por motivos fúteis e absurdos, o êxito da procura é frustrado continuamente. Intimamente o homem sabe sempre da futilidade dos seus esforços para encontrar as forças superiores, e o sabe a despeito de todas evidência em contrário. Persiste, entretanto, na procura, porque prefere dar ouvidos à evidência, e não à sua convicção íntima. As forças, tão próximas e tão inalcançáveis, mantêm em face do homem uma atitude de indiferença e desprezo. Consideram o homem culpado (nisto estão de acordo com ele), mas não lhes vale a pena castigá-lo.
Ele próprio provoca o castigo com sua insistência de conhecer a sua culpa. A suspensão provisória do castigo divino (e por que não usar essa palavra?) não é consequência da Sua misericórdia, mas de Sua superorganização. A força divina funciona devagar e mal, porque é complicada demais e administrada numa rotina que lhe é totalmente inapropriada. Dada a completa indiferença da força divina em face do homem, este mau funcionamento não tem a mínima importância. Entretanto, neste mau funcionamento reside a única esperança do homem para escapar ao castigo justo que o espera. Sabendo, muito embora, disto, o homem, absurdamente, se esforça em apressar o funcionamento do aparelho divino. Nesse esforço frustrado reside a finalidade da vida humana. Assim devemos compreender o ensinamento do mestre Kafka: "Passei a minha vida a combater o desejo de acabar com ela".
A teologia que esta mensagem descortina diante da nossa visão estarrecida tem vários pontos de contato com as teologias das nossas religiões tradicionais, mas se distingue delas quanto ao seu clima. O clima da vida humana é o da angústia não mitigada por qualquer esperança, e o clima das hostes divinas é o nojo. A angústia humana não é, propriamente, um conceito novo, embora raras vezes tenha sido tão veementemente pregada como em Kafka. O que me parece ser revolucionário e epocal (no sentido exato dessa palavra) é o conceito do nojo divino. Em face do nojo divino a nossa angústia assume, realmente, proporções gigantescas, incomparavelmente maiores do que as da angústia em face da ira ou do ciúme divino. É preciso sorver esse nojo até o fundo, se quisermos compenetrar-nos da teologia de Kafka.
Não é o nojo que Deus sente da sua criação, este já era conhecido dos antigos profetas ("somos vermes diante de Ti"). É o nojo que Deus sente por Si mesmo. A tal ponto parece se blasfêmea essa teologia, que começamos a compreender e simpatizar com os esforços de Kafka de mascará-la em códigos.
Os pontos de contato com as teologias tradicionais são muitos e evidentes. É por esta razão que podemos considerar Kafka um profeta judeu, embora heterodoxo. Temos aqui, para citar somente um exemplo, o conceito do pecado original. Todos são culpados. Entretanto (e isto é característico), o pecado original é o estado primitivo, "natural" do homem, não é consequência de qualquer ato humano. Com efeito, ainda não comemos do fruto da árvore da sabedoria, e são justamente os nossos esforços de cometer esse crime que são continuamente e absurdamente frustrados.
A bem dizer (e nisto reside, creio, a suprema ironia), vivemos ainda no Paraíso, num Paraíso kafkiano, bem entendido. Numa teologia assim não há, evidentemente, lugar para a salvação e o Salvador, já que a queda ainda não aconteceu. O próprio conceito "salvação" carece de significado dentro do concetxto da obra de Kafka.
Uma enumeração dos pontos de contato entre a mensagem da obra de Kafka e a teologia tradicional, por fascinante que possa ser, seria, no entanto, um exercício fútil. A força de convicção que essa mensagem carrega consigo vence (com todas as reservas que continuamos nutrindo, e que ele próprio, certamente, continuava nutrindo) porque a visão que ele descortina concorda com a nossa vivência mais íntima. Trata-se de uma vivência tão penosa que a relegamos ao esquecimento, mas ela continua dormente em nosso espírito. Kafka veio para despertá-la. Consideremos o seu impacto:
Kafka ensina que a vida humana é uma procura frustrada do saber. Mas não se trata de uma procura orgulhosa, ou de um saber que proporciona poder. Nada tem a ver com a Hybris dos gregos. A vida humana nada tem de heróica. O homem não é rebelde. A procura à qual se dedica é um tatear dócil e humilde, e o saber que procura é o da sua própria perdição e futilidade. Esta ordem de ideias não concorda com a imagem do homem que geralmente estamos acostumados a projetar, mas concorda com a vivência íntima que temos de nós mesmos nos momentos de recolhimento.
Kafka ensina que as forças que nos governam são indiferentes e desinteressadas na nossa sorte. Mas não se trata da indiferença e do desinteresse das forças cegas da natureza, as quais substituem a divindade na mente dos ateus ingênuos do século passado. Trata-se de uma indiferença cheia de desprezo, e as forças que a nutrem para conosco a demonstram brincando conosco absurdamente e sem regra, para não dizer idioticamente. Esta ordem de ideias não concorda nem com o conceito teológico tradicional da providência divina, nem com o conceito cientista das leis da natureza, mas concorda com a nossa vivência íntima da estupidez e da absuridade das nossas desgraças. Kafka ensina que as forças superiores são máquina pedante, corrupta, mal conservada e nojenta. Esta ideia da Divindade é igualmente repulsiva e grotesca aos olhos de um crente como aos olhos de um ateu. Concorda, entretanto, com a vivência íntima que temos das forças que nos regem.
Senão, por que rezamos, a não se para corromper uma instância inferior da hierarquia Divina? Por que fazemos promessas a nós mesmos, senão para enganar um suboficial celeste, encarregado vagamente do nosso caso, mas que o acha aborrecido e tedioso demais para interessar-se realmente? Por que praticamos boas obras, senão para que obtenhamos um lançamento a crédito na nossa conta-corrente celeste, temendo, ao mesmo tempo, que algum contador incompetente faça um lançamento errado? Não é somente a nossa mente individual que opera intimamente com o conceito kafkiano da Divindade, mas as próprias religiões tradicionais o nutrem. Que outro significado podem ter, por exemplo, rezas do tipo "Ora pro nobis", a não ser "Não te esqueças de rezar por nós, já que és perfeitamente capaz de esquecer"?
Enfim, a força da convicção que a mensagem de Kafka tem, não provém  nem da razão, nem da fé, mas da vivência imediata.

Vilém Flusser. Da Religiosidade. A literatura e o senso de realidade. Escrituras, 2002

sexta-feira, 12 de junho de 2015

Fé, ciência, tecnologia e filosofia

Agora (2009)

Quando abro o rádio, jorram anúncios; quando abro a torneira, jorra água. Se amanhã a torneira jorrasse anúncios, a minha reação seria surpresa. Vivo em expectativa constante: espero constantemente que torneiras jorrem água, pura água, toda a água, e nada mais que água. Essa minha expectativa não é confirmada pela experiência que meus sentidos fornecem. Torneiras jorram água suja, ou pouca água, ou nada. Mas a evidência dos meus sentidos não destrói a minha fé nas torneiras. "Explicam" o comportamento das torneiras por fatores externos, como a hipótese da falta de chuva, ou a hipótese do encanador, ou a hipótese da Municipalidade. Essas hipóteses "provam" que, eliminados os fatores externos, torneiras jorram água. A evidência dos meus sentidos, embora prima facie contrária à minha fé nas torneiras, fortalece, em virtude das hipóteses, a minha expectativa de água. Pois é este exatamente o caráter da fé: é uma esperança que transforma evidência contrária em prova. 
Mas o caso da torneira jorradora de anúncios seria diferente. Seria, não o inesperado, mas o inesperável. Causaria surpresa. Poderei superar essa surpresa com hipóteses ousadas. Pela hipótese da alucinação, ou pela hipótese do rádio portátil escondido na torneira, por exemplo. Mas, por um instante pelo menos, a minha fé ficará abalada. 
Casos como o da torneira jorradora de anúncios ocorrem. Antigamente eram chamados limagres. Hipóteses ousadas reintegravam os milagres no tecido da fé, a qual continuava fortalecida por eles. "Das Wunder ist des Glaubens shoenstes Kind" (o milagre é o filho mais belo da fé) diz Goethe. Tão forte era a fé, que os antigos esperavam pelo inesperável, pelo milagre. Atualmene, embora continuem ocorrendo casos surpreendentes, não ocorrem milagres. Evoluímos um mecanismo que sufoca automaticamente surpresas. É o mecanismo do "faça-de-conta". Quando algo inesperável ocorre, fazemos de conta que era esperado. É graças a este mecanismo que nada nos surpreende. Tudo é corriqueiro. Torneiras jorradoras de anúncios: nada mais corriqueiro, nada mais banal que isto. 
Que ocorram. O choque de surpresa que causarão não passará de vestígio de uma ingenuidade superada. A tese do presente artigo será que este nosso mecanismo é sintoma de fé profunda. Que somos uma época que espera por milagres. E que nossa fé na torneira é parte da nossa fé fundamental na tecnologia. De uma esperança portanto que é fortalecida por evidências contrárias, e que cresce com torneiras jorradoras de anúncios, com milagres portanto. 
Se digo: "Amanhã nascerá, em vez de sol, um queijo de Minas para iluminar a Terra", terei dito uma absuridade. Mas se digo: "Ontem nasceu um queijo de Minas e iluminou a Terra", e se milhares confirmarem esta minha observação, terei articulado uma banalidade. É óbvio que o queijo de Minas nasceu. As teorias astronômicas esperavam pelo nascer do Sol, mas essas teorias são apenas sistemas hipotéticos incompletos. Comportam uma reformulação progressiva. Se reformuladas à luz dos acontecimentos de ontem, provam essas teorias que o nascer do queijo de Minas era um acontencimento necessário, ou, pelo menos, altamente provável. O queijo de Minas, longe de abalar a astronomia, prova, pelo contrário, a eficiência do método científico como captação da "realidade". Todo fenômeno novo se enquadra nesse método por simples modificação da teoria. Esta é, a meu ver, a forma como funciona a fé  na atualidade. 
É a fé na coincidência do pensamento de um determinado tipo com o mundo que nos cerca. O primeiro artigo dessa fé reza: "O pensamento lógico coincide com a realidade". O segundo artigo reza: "A expressão mais perfeita do pensamento lógico são enunciados da matemática pura". O credo conclui: "A realidade tem a estrutura da matemática pura". Isto não é, como parece, racionalismo puro.A tecnologia prova, empiricamente, qu enossa fé é a fé verdadeira. Nossas máquinas e nossos instrumentos são fé aplicada, são "obras" no significado teológico do termo. E nossas máquinas e instrumentos funcionam. "Provam" nossa fé empiricamente. Funcionam como funciona, por exemplo, a torneira. Jorram água, e isto prova, também, que nossa fé é verdadeira. Ou jorram anúncios, e isto prova, de maneira concludente, que nossa fé é verdadeira. Nossa fé tem um aspecto racional, e um aspecto empírico: é uma fé completa. 
A coincidência entre pensamento lógico e "realidade" é incrível. Não pode ser acreditada. Nossa vivência do mundo a desmente a todo passo. No entanto, nossa fé aceita essa coincidência como fato indubitável. É uma fé autêntica, porque crê quia absurdum. Mas ao dizer que a coincidência é incrível, coloquei o presente argumento em terreno estranho à fé da atualidade. A "nossa" fé não é a fé do presente argumento. Como consegui essa ironia? Evidentemente porque nossa fé permite, em seu estágio atual, que seja abandonada. Abriu fendas. Por uma dessas fendas escapou-lhe o presente argumento. Uma fé que abre fendas é uma moradia incômoda e perigosa. É incômoda, porque ventos gélidos invadem os seus aposentos e fazem tremer os que nela se abrigam. E é perigosa, porque ameaça ruir e soterrar os habitantes em sua ruína. Duas são as possibilidades que uma situação destas oferece: método pelo qual o pensamento se agarra às coisas para modificá-las. 
O próprio êxito desses dois métodos (que é o triunfo do Ocidente) e também, a meu ver, o começo do fim da Idade Moderna, e, talvez, por isto mesmo, o começo do fim do Ocidente. Porque o conhecimento do mundo dos corpos que a ciência proporciona ao pensamento revela progressivamente a dubiedade desse mesmo mundo, e a modificação nele operada pela tecnologia é portanto fútil. 
Em outras palavras: as conquistas epistemológicas e éticas do pensamento ocidental em seu avanço contra o mundo dos corpos revelam progressivamente que falta, a esses métodos, o concursus Dei. Há algo fundamentalmente errado na visão cartesiana da qual brotaram. Se a física moderna revela progressivamente e de muitas maneiras que o fundamento da matéria é o pensamento, já que os elementos da metéria se revelam como sendo mais símboos do pensamento que outra coisa (nêutrons, mésons etc), e já que em certos processos fundamentais não é possível fazer-se a distinção entre observador e observado, isto é, entre sujeito e objeto, há algo errado na física como método do conhecimento.E se a tecnologia modificou o mundo dosc orpos a ponto de tornar perfeitamente imaginável um estágio de fartura e de lazer, sem que com isto diminua a angústia e o tédio humano, há algo errado na tecnologia como busca de felicidade. Esse erro fundamental devemos buscá-lo, ao meu ver, no conceito do pensamento tal como foi projetado pela visão cartesiana, e realizado pelo Ocidente no curso da Idade Moderna.
A dicotomia que Descartes estabelece entre matéria e pensamento, entre corpo e alma, entre o duvidoso e o indubitável, é, ao meu ver, uma dicotomia nefasta. Mas confesso ser ela de superação muito difícil. Porqu eessa dicotomia, longe de ter surgido no sistema cartesiano, já está contida nos mitos primordiais que deram origem à civilização ocidental e que encontrram a sua experssão ritualizada no cristianismo. 
Descartes não passa, deste ponto de vista, de uma explicação do cristianismo. Já o cristianismo distingue, para falarmos com Vicente Ferreira da Silva, entre o salvável (que é a alma) e o sacrificável (que é o corpo). A dicotomia pensamento-matéria não é portanto fruto de uma distinção epistemológica, como parece ser se formos considerar a partir de Descartes, mas é fruto de todo um conjunto ético-religioso do qual participamos. Já que fomos projetados por esse conjunto, já que existimos nele e graças a ele, é tremendamente difícil imaginarmos outro projeto existencial, no qual a nefasta divisão matéria-espírito não seria o caso. Embora saibamos de outras civilizações, como a indiana (que desconhece a divisão a ponto de conceber espíritos materializados), e de culturas chamadas "primitivas" (que vivem em mundos pré-lógicos, isto é, anteriores a essa divisão), é-nos impossível sorvermos existencialmente esses projetos alheios ao nosso. 
Mas é necessário pelo menos tentarmos esse salto para fora do nosso projeto, se é que tenho alguma razão ao afirmar que a divisão matéria-pensamento ameaça a nossa civilização com o mergulho no abismo do tédio e da futilidade, justamente pelo êxito da ciência e da tecnologia. E creio ser possível esse salto, até certo ponto. Não pelo ultrapassar do nosso projeto, mas graças ao poder reflexivo do qual dispomos e o qual nos poderá conduzir até perto das nossas origens, daquelas origens nas quais se deu, in illo tempore, a divisão entre pensamento e matéria, entre alma e corpo. A reflexão, portanto, para a qual convido os senhores, deve conduzir-nos até aquele ponto (para recorrer a um mito) no qual se deu a expulsão do paraíso, isto é, a alienação que é o nosso pensamento. 
Que poder é esse, que acabo de mencionar e que chamei de reflexivo? Para iluminá-lo, voltemos por um instante a considerar o processo do pensamento tal como o descrevi há pouco. Disse que o pensamento se precipita sobre os corpos para compreendê-los, e que se agarra a eles para modificá-los. O pensamento é portanto um processo explosivo que se expande para dentro do mundo dos corpos para devorá-los. O método desse devorar é a ciência e a tecnologia. Mas existe outro movimento do pensamento, um movimento oposto. Nesse movimento contrário o pensamento se vira contra si mesmo para compreender e devorar-se a si mesmo. A palavra "reflexão" indica a direção desse movimento, já que denota um recuo em direção oposto ao avanço. A palavra correspondente alemã "Nachdenken" (pensar atrás ou depois) indica a função desse movimento, já que denota controle. 
E a palavra correspondente tcheca "rozmyslení" (pensar analítico) indica o resultado desse movimento, já que denota a decomposição do pensamento. A reflexão é portanto o movimento inverso do pensamento, que o controla e o decompõe em seus elementos. O método esse compreender-se e modificar-se do pensamento é a filosofia. A filosofia é portanto exatamente o contrário da ciência e da tecnologia. As tentativas empreendidas de diversos lados, por exemplo pelos marxistas, por Dilthey e por Husserl, de tornar científica a filosofia, denotam, ao meu ver, uma incompreensão total do processo do pensamento. Se afirmei que, em nossa tentativa de evitar a queda da nossa civilização no abismo do tédio e da futilidade, devemos recorrer à reflexão, tinha eu em mente exatamente essa oposição entre filosofia de um lado, e ciência e tecnologia do outro. Não é com mais ciência e mais tecnologia que sairemos da situação angustiada na qual nos encontramos mas com mais filosofia (se é que sairemos). É verdade que na descrição que acabo de lhes oferecer a ciência e a tecnologia aparecem como tendências progressivas do pensamento, e a filosofia como a sua tendência regressiva. E é verdade que a grande maioria continua valorizando positivamente o progresso como herança dos dois séculos passados e a despeito de muitos sintomas inquietantes. Mas existem situações, reconhecidas mesmo por aqueles que põem sua fé no progresso, nas quais uma expansão excessiva exige um recuo para consolidação e descanso. Creio que devemos caracterizar assim a nossa situação, mesmo se formos otimistas. A minha proposta de substituirmos a ciência e a tecnologia pela filosofia pode ser portanto encarada como um réculer pour mieux sauter mesmo por aqueles que não crêem, como eu, estar o nosso progresso dirigido rumo ao abismo. 
Disse que a reflexão metódica, a filosofia portanto, deve conduzir-nos até perto das nossas origens, em profundidades portanto que caracterizei pelo mito da expulsão do paraíso. Esse mito nos conta, conforme creio, em sua linguagem densa e poética, que caracteriza todo mito, o mistério do surgir do pensamento. Conta-nos esse mito que fomos expulsos e lançados para cá porque comemos do fruto proibido da distinção entre o bem e o mal, do fruto da divisão e da dúvida portanto. Modernizando um pouco, poderei chamar esse fruto de "antimescalina". A expulsão do paraíso, o qual pode ser descrito como o estado da não-divisão e da não-dúvida, a expulsão para cá, que pode ser descrito como o estado da divisão e da dúvida, não é um acontecimento do passado histórico remoto, mas é um acontecimento mítico, isto é, um acontecimento que a todos nós aconteceu e sempre acontece de novo. Estamos sendo expulsos do paraíso toda vez que distinguimos, toda vez que duvidamos. Aliás, duvidar é sinônimo de distinguir e de estar expulso, já que etimologicamente parente de dividir e de dois. Em alemão isto se torna ainda mais claro, já que "zweifeln" (duvidar) conduz ao "verzweifeln" (perduvidar), isto é, ao desespero. A nossa expulsão desesperada do paraíso é portanto a própria dúvida, que é por sua vez um distinguir, um dividir, um ordenar portanto. 
Fomos expulsos do paraíso em direção da ordem e do progresso. Deixamos para trás, sem esperança, o caos da indistinção e da ingenuidade, e estamos sendo lançados, impiedosamente, em direção do cosmos da clareza distinta, que é, como diz o mito, a morte. Esta me parece ser a mensagem do mito, que foi reformulada, em sua versão mais moderna, por Heidegger na frase: "fomos lançados para cá e estamos aqui para a morte". Mas esse duvidar, que é um distinguir e ordenar, e que o mito chama de expulsão, esse duvidar é o próprio pensamento. Com efeito, duvidar e pensar são sinônimos, e Descartes é, todo ele, resultado desse sinonimato.A coisa pensante cartesiana é indubitável, justamente porque ela é a coisa que duvida. De acordo com Descartes a dúvida não pode duvidar de si mesma. A dúvida, portanto o pensamento, distingue e ordena o duvidoso, submete o duvidoso a uma ordem, a fim de que o duvidoso deixe de sê-lo e se torne indubitável. O pensamento é portanto um processo absurdo. Duvida para deixar de duvidar, e transforma, nessa tentativa, o duvidoso em dúvida. O processo é absurdo em dois aspectos: é absurdo porque a meta do pensamento é acabar consigo mesmo, e é absurdo porque o pensamento pretende alcançar essa meta pela transformação de tudo em dúvida. O pensamento em sua absurdidade é comparável à sede que pretende matar-se bebendo o mar: porque é absurdo querer beber o mar, e porque com cada gota bebida a sede aumenta. Quanto mais progride o pensamento, tanto mais evidente se torna a sua absuridade dupla, tanto mais evidente se torna ser o pensamento a expulsão do paraíso.

Vilém Flusser. Da religiosidade. A literatura e o senso de realidade. São Paulo, Editora Escrituras, 2002 

quarta-feira, 4 de fevereiro de 2015

Ceticismo e desespero, Emil Cioran

The Triumph of Doubt (1946), Victor Brauner 


Duvidar de tudo e continuar a viver - eis um paradoxo que, todavia, não é dos mais trágicos, já que a dúvida é muito menos intensa e angustiante que o desespero. A mais frequente é a dúvida abstrata, na qual é envolvida só uma parte do ser, ao contrário do desespero onde a participação é orgânica e total. Um certo diletantismo e algo de superficial caracterizam o ceticismo face ao desespero, este fenômeno tão complexo e estranho. Posso duvidar de tudo e opor ao mundo um sorriso de desprezo, mas isso não me impedirá de comer, de dormir tranquilamente ou de me casar. No desespero, do qual não se apanha a profundidade senão vivendo-o, esses atos são possíveis somente a preço de esforços e sofrimentos. Nos cumes do desespero, ninguém possui mais o direito ao sono. Desta maneira, um desesperado autêntico nunca esquece nada da sua tragédia: a sua consciência preserva a dolorsa atualidade da própria miséria subjetiva. A dúvida é uma inquietude ligada aos problemas e às coisas, e provém do caráter insolúvel de todas as grandes questões. Se os problemas essenciais pudessem ser resolvidos, o cético retornaria a um estado normal. Que diferença com a distuação de um desesperado o qual, mesmo resolvendo todos os seus problemas, jamais se tornaria menos inquieto, já que a sua inquietude brota da estrutura do seu ser. No desespero, a ansiedade é imanente à existência. Não são os problemas, então, mas as convulsões e as chamas interiores que torturam. Pode-se lastimar que nada neste mundo esteja resolvido; ninguém, todavia, se suicidou por isso.

Emil Cioran. Sur les cimes du désespoir.

domingo, 1 de fevereiro de 2015

O animal ciente da própria morte

Vigeland Park (Oslo, Noruega)


Conceitos decorrentes da concepção cristã do mundo: a morte. Trecho de transcrição de aula ministrada no curso "A Imagem do Mundo", de Vilém Flusser. Originalmente disponível em FlusserBrasil.
Creio que a famosa frase de Marx "Primeiro comer, depois filosofar" deveria ser reformulada para rezar: "Primeiro aceitar a morte, depois comer, filosofar ou fazer qualquer outra coisa".
Se alguém me for despertar no meio da noite e perguntar, o que distingue o homem do animal, responderia sem refletir: a consciência do homem de sua própria morte. Sem dúvida seria uma resposta irrefletida. Sem dúvida há uma série de distinções mais objetivas entre o animal e o homem. Sem dúvida a consciência de sua própria morte não está sempre presente no consciente despertado. Portanto dizer que o homem é um animal que sabe que vai morrer é uma informação irrefletida. Ela tem, no entanto, uma qualidade que nenhuma reflexão, por matura que seja, consegue produzir: ela tem a qualidade de autenticidade. Irei mais longe e direi que o saber da nossa morte é o único pensamento autêntico do qual somos capazes, todo o resto, todo esse enorme resto de ideias, de vontades, de sentimentos, de imaginações, é pose. É pose em maior e menor grau, é sincero em diluições mais ou menos adulteradas, justamente porque se desenrola diante do pano de fundo inalterável e inexortável da certeza autêntica da morte. A própria certeza da morte torna todo o resto pálido e patológico, uma tentativa desesperada e inautêntica de fugir à morte. E essa situação do homem é que torna tão atraente intelectuamente e sentimentalmente a famosa frase de Heidegger, intraduzível para o português: "Wir sind zum Tode da", que transfiro da seguinte forma: "Vivemos neste momento e sempre para podermos morrer e até a morte".
A psicologia moderna, especialmente a freudiana, insinua, se não o diz abertamente, que tudo aquilo que chamamos de civilização é uma sublimação de um terror reprimido. Em outras palavras, que a civilização é produto de uma doença. Todas as grandes e belas obras do espírito humano, os majestosos edifícios palpáveis da arquitetura tanto quanto os edifícios impalpáveis da ciência, da filosofia, da teologia, e também os edifícios mais transitórios da política e da economia, são outros tantos sintomas da neurose e psicose fundamental: o terror da morte. São sinais da loucura coletiva e individual da humanidade. E esta loucura é resultado da incapacidade do homem de suportar a certeza da morte. Se for a dar crédito aos psicanalistas, diria que o que distingue o homem do animal é o fato do homem saber de sua própria morte e a consequente loucura do homem. Mas se a fuga do homem da morte para a civilização é uma loucura, como dizem os freudianos, ou se é uma mentira, como dizem os existencialistas, então é uma loucura bela e uma mentira grandiosa. Se é assim, não quero sarar, nem quero ter a vivência da autenticidade. Porque sarar da loucura da civilização, desmentir a mentira da cultura, seria volver ao estado são e autêntico da brutalidade animalesca. Sou portanto contrário às tendências modernas de encarar a morte de frente, sou contrário aos ensinamentos filosóficos da moderna psicologia e aos ensinamentos psicológicos da moderna filosofia. Sou reacionário por esperança de que todos esses movimentos atuais, que me parecem bárbaros, são passageiros. Voltará, assim espero, o dia quando a morte reaparecerá em seu aspecto tradicional cristão como porta para a eternidade.

(...)

A situação do homem é absurda. Tudo que ele faz, ou quer, ou sente, ou pensa carece de sentido, porque está condenado de antemão ao nada, à morte. O homem é derrotado em tudo pelo nada e é derrotado não somente na totalidade de sua vida, pela morte, mas também em cada instante individual, pelo nojo. Esse nojo é inevitável, é o produto da certeza da morte e portanto da carência de sentido de qualquer ação, de qualquer pensamento, de qualquer sentimento. É, no entanto, possível aceitar a morte, aceitar o nojo, resolver-se a morrer, resolver-se a viver com o nojo, viver quand-meme, a despeito da morte e do nojo. Nisto reside a autenticidade. A outra possibilidade é recusar-se a morrer, recusar-se a sentir nojo, recusar-se a viver quand-meme. E essa recusa pode tomar a forma de suicídio metafísico, o mergulho na fé, ou a forma do suicídio físico, o mergulho no rio. Nisso reside a decadência, a não-autenticidade. A diferença entre essas duas mentalidades da existência não pode ser discursada, tem que ser vivida.

Confesso que essa ética nojenta e horrorosa é amplamente modificada por diversos pensadores existencialistas, Jaspers por exemplo. Mas essas modificações não me parecem autênticas, se me permitem usar essa palavra depois daquilo que foi dito. Mas o que falta ao existencialismo em força ética compensa pela força estética, pois é no campo do belo e da arte que a autenticidade adquire o seu significado. A interpenetração entre a existência e aquilo que está diante da mão, quando autêntica, não resulta somente em conhecimento, mas resulta, como já disse, na transformação daquilo que esteve diante da mão em instrumento vivido. Em outras palavras, o conhecimento é uma fase de um processo, e a obra de arte é outra fase do mesmo processo, a sabar do processo da vivência dentro da autenticidade. A vida da existência autêntica consiste, por assim dizer, em uma série de vivências criadoras. Tudo aquilo que esteve diante da mão, mas agora se tornou compreendido dentro da existência, isto quer dizer todo o passado de todas as existências autênticas, é testemunha (Zeug und Zeuge) da força criadora da autenticidade.

O conjunto da civilização é testemunha do produto criador da conversação autêntica entre as existências, e como tal, em certo sentido, aniquila a morte. É verdade que as obras não existem no mesmo sentido como existem as existências. Elas estão à mão, não existem sensu stricto, mas na forma de ser que as obras têm elas superam a morte. A estética do existencialismo é, depois de sua epistemologia, o que mais me atrai nessa corrente de pensamento. Creio que há, nessa concepção imediata e vivida do processo da criação artística, o germe para uma nova atitude para com a morte. E será talvez possível, através da estética existencialista, vislumbrar uma nova ontologia, que permitirá enfrentar a morte sem sermos aniquilados por ela.

Para os pensadores da idade moderna, que não repousam sobre a morte, a ética e a estética se relativizam, pulverizam. Não lhes falarei das éticas ocas e sem sangue, sem simpatia e sem pulsação que caracterizam esses professores que nos querem ensinar o bem pelo método matemático com demonstrações com papel e lápis. Perto desses coitados, desses kantianos e benthamitas, desses lockeístas e leibnizistas, com suas concepções do summum bonum e de um Deus necessário e assim por dainte, até a horrível ética dos existencialistas e de seus precursores como Schelling, Schopenhauer e Nietzsche, é tolerável, por ser pelo menos autêntica. Tampouco falarem da estética da idade moderna. Direi somente que com a idade média morreu o último estilo artístico autêntico do ocidente, o estilo gótico, e que o primeiro estilo autêntico ocidental ressurgiu depois da morte do mundo moderno e com o nascer do espírito existencialista, a saber as artes do fim do século dezenove. Não direi o absurdo de que a Europa não produziu obras de arte durante a idade moderna, mas direi que o espírito moderno fez o possível a sufocar a força criadora, que continuou não graças, mas a despeito desse espírito de pergaminho. Os diversos renascimentos e classicismos são prova da mania seca e murcha do espírito ocidental durante a idade moderna, e as grandes obras realizadas durante essa época são prova do vigor criador da Europa a despeito dessa mania. 

sábado, 31 de janeiro de 2015

Nossa comunicação



Para pensar a mídia, as novas tecnologias, o ensino e seu formato, as diferentes formas de comunicação e discursos, a política e o conhecimento:

O discurso teatral é o mais antigo, e antecede a história. É ele o discurso do patriarca que transmite os mitos da tribo à geração nova, é o discurso da avó que conta as lendas aos netos. O que caracteriza este tipo de discurso é o fato dos receptores encararem o emissor: formam um semicírculo em torno dele. Estão em posição de responsabilidade: vê-se obrigado a respostas. O teatro é discurso aberto para diálogos. A contestação, a reviravolta de discurso em diálogo, a "revolução", está no programa do teatro. Revoluções são possíveis em torno da fogueira e da lareira.
A partir do neolítico tardio isto passa a ser desvantagem. Quando se trata de empreendimentos coletivos como o são as construções de canais e de cidades, o que se pretende não é o diálogo, mas a obediência. A sociedade deve ouvir as mensagens sem poder contestá-las. A fim de conseguir tal método de discurso, é preciso que o emissor se torne inacessível para os receptores. É o método do discurso piramidal que vai ser introduzido. O qual vai formar a base comunicológica da história do Ocidente. Consiste ele na introdução de relais hierarquicamente organizados entre o emissor e os receptores. O primeiro exemplo de pirâmide é o reino sacerdotal. Nele as mensagens partem de um "autor" inacessível (um deus), e passam por "autoridades", relais cuja função é de manterem tal mensagem "pura" de ruídos, e de barrarem o acesso ao emissor para os receptores. O clima de responsabilidade, prevalescente no teatro, é subtituído pelo clima da tradição e da religiosidade. Tradição, porque os relais tra-dizem, e "religião" porque religam os receptores com o autor da mensagem. Tal clima do neolítico tardio continua caracterizando as pirâmides atuais, como sejam a Igreja, o Estado, o exército, os partidos políticos, as empresas.
A desvantagem de tal estratégia comunicativa é que torna difícil o diálogo. A estratégia é boa para o armazenamento de informações, mas má para a elaboração de informações novas. O tecido social estagna. Daí terem sido empreendidas reformas na pirâmide durante o renascimento. O propósito era o de preservar a eficiência da pirâmide, e simultaneamente abri-la para diálogos. Os relais foram transformados em círculos dialógicos, mas conservaram sua organização em hierarquia. O resultado foi o discurso em árvore. É ele o discurso característico da modernidade. A substituição das autoridades por círculos dialógicos subdividiu o discurso piramidal em ramos (especialidades), que tendiam a se subramificarem e a se entrecruzarem. Tal re-estruturação se revelou extremamente fértil. Todo ramo do discurso passou a produzir informações novas em progressão crescente. A dinâmica do discurso em árvore inundou a sociedade com verdadeira enchente de informações novas. Mas havia consequência imprevista. Todo círculo dialógico elaborou código específico no qual a nova informação era sintetizada. As informações destarte codificadas passaram a ser decifráveis apenas para os "especialistas" (participantes do ramo). Destarte as mensagens do discurso em árvore tendiam a ser indecifráveis para a sociedade como um todo. O que "resacerdotisou" e "reautorizou" o discurso. Os "leigos" não mais captavam as mensagens provindas das várias árvores: nem as da física nuclear ou da microbiologia, nem as das técnicas avançadas, nem as da arte de vanguarda. De modo que, a partir do século 20, os discursos em árvore deixavam de ter recepção geral, e passaram a ser absrdos enquanto métodos comunicativos.
A solução do problema é traduzir as mensagens dos discursos em árvores para códigos socialmente decifráveis. Construir aparelhos que "transcodam". O resultado disso é o discurso anfiteatral. É ele característico da autalidade.Os aparelhos da comunicação de massa são caixas pretas que transcodam as mensagens provindas das árvores da ciência, da técnica, da arte, da politologia, para códigos extremamente simples e pobres. Assim transcodadas, as mensagens são irradiadas rumo ao espaço, e quem flutuar em tal espaço e estiver sincronizado, sintonizado, programado para tanto, captará as mensagens irradiadas. A "cultura de massa" é o resultado deste método de comunicação discursiva. A transcodação e irradiação de mensagens resulta em transformação da sua estrutura original. As árvores funcionam linearmente, os media multidimensionalmente. Se admitirmos que a linearidade é a estrutura da história, os media se apresentam como comunicação pós-histórica. São caixas pretas que têm a história por input. E a pós-história por out-put. São programados para transcodarem história em pós-história, eventos em programas. 
Na situação atual as quatro formas de discurso co-existem. Mas os discursos teatrais (escolas, teatros etc), e os discursos piramidais (Estado, partido etc), estão em crise; são anacronismos comunicológicos dificilmente assimiláveis ao tecido da comunicação dominante. O exemplo mais óbvio do problema é o da família, a qual é pirâmide e teatro. Os discursos em árvore continuam se ramificando, e estão acoplados aos discursos anfiteatrais que transcodam suas mensagens. Destarte os mass media estão se tornando fontes preferenciais das informações disponíveis. São eles os que codificam o nosso mundo. Vivemos em clima pós-histórico. 
O discurso teatral programa diálogos circulares. O discurso piramidal visa excluir diálogo de todo tipo. O discurso em árvore programa diálogos circulares para especialistas. O discurso anfiteatral programa diálogos em rede. O teatro exige que se dialogue a mensagem, a fim de produzir informação nova. A pirâmide proíve o diálogo. A árvore exige competência específica, elitária, para se poder participar da elavoração de informação nova. O anfiteatro exige que a informação irradiada seja transformada dialogicamente em mingau amorfo, em "opinião pública", a fim de servir de feedback aos aparelhos emissores. A meta dos diálogos em rede não é a produção de informação nova, mas o feedback. Os aparelhos elaboraram métodos específicos (publimetrias, marketing, pesquisas da opinião, eleições, políticas etc); para recaptarem o feedback. "Democracia" no sentido de diálogo produtor de informação que não seja elitário é possível somente no teatro. Na situação atual, democracia é impossível. A sensação da solidão na massa é consequência disto. A democracia não está no programa.
Pois reformular a ciência em sentido dialógico implica reformular o tecido comunicológico da sociedade. Democratizá-lo. Mais que tarefa epistemológica, é pois tarefa política. Trata-se de tornar ciência politicamente responsável. Transformar em método a consciência que o saber é significativo apenas se for ponto de partida para a ação republicana. Mas, para que tal reformulação possa ser feita, é preicso que a república exista. E a república é o espaço público dos diálogos circulares. Atualmente tal espaço não existe. Todo espaço está ocupado pelas irradiações anfiteatrais e pelo diálogo em rede. Vista internamente, a crise da ciência se apresenta como crise epistemológica, mas vista a partir da sociedade, apresenta-se como crise estrutural: não é possível dialogisar-se o conehcimento, se não há espaço político para tanto. O caráter discursivo e elitariamente dialógico da ciência se deve, estruturalmente, ao seu acoplamento com os meios de comunicação de massa. Para que se faça nova teoria de conhecimento intersubjetivo, é preciso que se disponha de espaço para a intersubjetividade. A crise atual da ciência deve ser, pois, vista noc ontexto da situação comunicológica da atualidade. Enquanto não houver espaço para a política, para dialógos circulares não elitários, a crise da ciência se apresenta insolúvel.
Vilém Flusser. Pós-História. Vinte instantâneos e um modo de usar. Annablume, 2011. p. 74-79 

segunda-feira, 13 de outubro de 2014

Inovação a partir dos jovens

"A sociedade dos antropóides avançados, assim, controla os indivíduos por meio de suas sujeições e de suas hierarquias, mas não uniformiza as individualidades e permite-lhes desenvolver relativamente suas diferenças. Quando a hierarquia é rígida e autoritária, só os privilegiados da cúpula, e até mesmo só o chefe, é que podem desabrochar sua própria individualidade.
Desse modo, sociedade e individualidade aparecem-nos como duas realidades, que são, ao mesmo tempo, complementares e antagônicas. A sociedade maltrata a individualidade, impondo-lhe seus estatutos e suas sujeições, e oferece-lhe, ao mesmo tempo, as estruturas que lhe permitirão manifestar-se. Utiliza, para sua variedade, a diversidade individual, a qual, se assim não fosse, se dispersaria ao acaso na natureza, e, por outro lado, a variedade individual utiliza a variedade social para procurar desabrochar. Assim, ao nível da sociedade primática, já não podemos apresentar a sociedade como um simples enquadramento e o indivíduo como uma unidade que se arruma numa estante, já que o enquadramento é constituído pelas relações interindividuais e já que não há estante vazia enquanto não houver indivíduo para ocupá-la. Por outras palavras - e isto é capital - sociedade e individualidade não são duas realidades separadas, que se ajustam uma à outra, mas há um ambissistema em que, complementar e contraditoriamente, indivíduos e sociedade são constitutivos um do outro, embora se parasitando um ao outro".
Edgar Morin, O Enigma do Homem, p.42-43. Editora Zahar (1979)

"O estudo contínuo dos macacos da ilha de Kyushu permitiu detectar alguns desses fenômenos. Um grupo de macacos que vivia na orla da floresta tinha o costume de se alimentar de tubérculos, que eles limpavam com a mão, depois de os terem desenterrado; acidentalmente, um jovem aproximou-se da margem e deixou cair um desses tubérculos no mar, apanhou-o e, assim, descobriu que a água do mar não só poupava a limpeza manual, como também apresentava a vantagem do tempero. Esse jovem adotou o hábito de molhar seus tubérculos no mar, sendo imitado por seus companheiros, mas não pelos mais velhos; contudo, o hábito generalizou-se no decorrer da geração seguinte. Os macacos, a paartir de então, ampliaram seu espaço social, incluindo nele a beira d'água, o que resultou na integração de pequenos crustáceos e mariscos na sua alimentação. O embrião de 'cultura' dessa sociedade, isto é, as práticas e os conhecimento de caráter não-inato, enriquecera-se. O processo de inovação viera de um jovem e espalhar-se rapidamente pelo grupo marginal dos jovens. Com a subida dos jovens para a classe dos adultos, a inovação integrada tornava-se costume, trazendo consigo uma série de pequenas inovações que também se tornaram costume. É certo que se trata de um fenômeno menor e as modificações desta ordem na vida social até mesmo dos primatas mais evoluídos são mínimas, sem dúvida, num mesmo nicho ecológico. Mas podemos ver que a existência do grupo dos jovens, curioso, brincalhão, explorador e, ao mesmo tempo, marginal e desviado, constitui, para a totalidade da sociedade, uma fronteira aberta, através da qual podem emergir elementos de mudança.
A fonte da mudança é, aqui, um acontecimento aleatório que, logo que seu caráter prático e agradável é apreendido, se transforma em inovação, a qual se torna progressivamente costume. As condições da inovação são comportamentos desviados, ao acaso, frequentes entre os jovens, isto é, do ponto de vista da integração social, é 'ruído' ou desordem. Nós podemos captar ao vivo a transformação de um 'ruído' em informação e, também, a integração de um elemento novo, fruto de um comportamento aleatório, na ordem social complexa. Estamos no limiar da evolução sociocultural".
p.47-48

domingo, 28 de setembro de 2014

Cappella Sassetti, the donor portrait and the survival in the image

Francesco Sassetti's tomb with Giuliano da Sangallo's reliefs in Cappella Sassetti, Santa Trinità, Florence

The custom of outfitting chapels inside a church and having Masses said for the family's dead first appeared in Tuscany at the end of the thirteenth century. The task assigned to Ghirlandaio, as one learns from a preparatory drawing preserved in the print collection in Rome, still shows a traditional Franciscan subject. It was clearly altered during its execution in the Santa Trinita chapel, in a composition organized around the tombs of Francesco Sassetti and his wife, a descendant of a family of Etruscan lineage, Nera Corsi, whom Francesco had married in 1459. Deviating from the cycle of Saint Francis as one finds it represented at Santa Croce - in Giotto's Bardi Chapel or in the marble reliefs for the pulpit in the nave, sculpted in the 1470s by Benedetto da Maiano - Ghirlandaio transposed episodes of the saint's life into a contemporary context and represented sites of the donor's activities in the background: the fabbriche of Assisi have been replaced by contemporary views of Geneva and Florence. The tombs of Francesco and his wife were inserted in semicircular niches, called arcosòli, or recesses, on the level of the frescoes and situated on the sides of the chapel at exactly the same height as the empty sarcophagus in the center of the painted Nativity on the panel above the altar. The deceased are depicted in full-length portrait, quite reduced - they measure about 3.9 feet - between the real tombs and the image of the empty tomb, making the scenography of the chapel suggest the assumption of the deceased bodies in the representation.

On the right-hand wall of the chapel, beneath the niche housing Sarsetti's tomb, a relief sculpted by Giuliano da Sangallo, inspired by a sarcophagus representing the death of Meleager, shows a corpse partially enveloped in a shroud and stretched out on a catafalque with torso half raised. To the left, a seated woman weeps, while two others, with hair in disarray, throw arms heavenward: together they express the two sides of grief, one melancholic, the other convulsive. The bas-relief, like a commentary, brings out the double continuity between Sassetti's tomb and the full-length portrait of him: it demonstrates the passage from physical death to survival in an image (the corpse rises, accompanied in its resurrection by the ecstatic transformation of the weeping woman into a maenad), giving Ghirlandaio's frescoes over these funeral reliefs and the tombs of Sassetti and his wife what Panofsky would call in 1964 the quality of an "exorcism" (Philippe-Alain Michaud. Aby Warburg and the Image in Motion, p.109-110).
The Confirmation of the Rule of the Order of Saint Francis
If one now considers The Confirmation of the Rule of the Order of Saint Francis in the chapel's lunette, which opens onto another Florentine setting (the Piazaa della Signoria), one understands that the empty tomb painted on the lower panel and the resurrected child on the middle fresco develop a common theme: they prepare and justify Sassetti's intrusion into the historico-legenday space of the upper fresco as a middle realm between the sarcophagus containing the patron's real body and his effigy. The tomb at the right of the chapel, which contains - or is thought to contain - Sassetti's real body, becomes the empty tomb of the Nativity, and the empty tomb in turn prefigures the resurrection of the child and Francesco's reappearance, above, in the real setting of the Florentine city. 
Francesco's entrance into the image echoes, in transfigured form, his body's entrance into the chapel. He takes his place in the painting with his entourage - his Umwelt - intruding into the sacred narration as wel as into the city's history, creating the conditions for his fictive appearence: "Neither loggia nor choir stalls, not even the balustrade behind the bench of Cardinals, can shield the pope and Saint Francis from the intrusion of the donor's family and their friends." The patron appears to bear witness, through his gesture of devotion, to a religious concept of existence, yet his effigy is first and foremost profane: he participates in the commemoration of the saint in order to give a lasting testimony of his person and his power. In making the comissio, Sassetti sought not to incorporate himself into the narration but to use to his advantage the field of representation in both its dimensions: the historico-referencial (the city of Florence) and the sacred (the legend of Saint Francis), Warburg removes Sassetti's mask of piety when he writes: "The portraits on the wall of his chapel reflect his own, indomitable will to live [Daseinswillen], which the painter's hand obeys by manifesting to the eye the miracle of an ephemeral human face, captured and held fast for its own sake."
The donor's image parasitizes the hagiographic sequence evoked by the saint's presence, reducing it to a secondary action and rendering it nothing more than the guarantee of the votive efficacy and legitimacy of the image. Sassetti, in having himself represented in the legend of Saint Francis and commissioning two tombs in a pagan style from Giuliano da Sangallo, responds to a very ancient survival rite running through the figurative apparatus of Christian belief. 
         (Philippe-Alain Michaud. Aby Warburg and the Image in Motion, p.111-114). 

Portrait of the Donor Francesco Sassetti

sexta-feira, 12 de setembro de 2014

Criatividade e autenticidade: da cultura à indústria cultural

Tenho relido textos da época da graduação, aqueles que eu havia tido contato nas aulas de Teoria da Comunicação no primeiro ano de Jornalismo. Alguns dos exemplos são os escritos "Comunicação de massa, gosto popular e a organização da ação social", de Robert K. Merton e Lazarsfeld, e "A indústria cultural", de Theodor Adorno. Nesses trabalhos há muitos conceitos que hoje, para a gente, são exagerados (maniqueístas) e até mesmo elitistas, mas certas coisas ainda fazem muito sentido, de alguma forma. 

Boa parte dos conceitos vistos nesses textos citados aparece novamente na opinião de Milton Santos, que faz questão de trabalhar justamente a diferença entre cultura e indústria cultural. Separei algumas citações do artigo que achei interessantes quando dizem respeito sobre a distinção entre o que é uma mercadoria cultural e o que seria realmente cultura.

Acredito que hoje já deve existir uma crítica sobre a estereotipação e o dualismo que sustenta esse conceito de oposição, mas não vou levar o post para esse lado. Vejo isso se refletindo atualmente no âmbito literário (apesar de ser frequente em diferentes áreas), quando discutem a oposição entre literatura de entretenimento e livros que, de fato, seriam obras de arte por não terem a função de ser mercadorias e sim a passar uma experiência estética, narrativa e linguística primorosa. No entanto, até que ponto o produto massivamente vendido e divulgado também não se debruçou na pesquisa e na técnica (mercadológica e que segue a moda/status quo de seu momento) e até que ponto a suposta obra de arte também não tem a pretensão de se tornar mercadoria (no sentido de promover retorno financeiro ao autor) e ser bem divulgada? Como mencionou Adorno, citando Benjamin (A Obra de Arte na Era de Sua Reprodutibilidade Técnica): "A indústria cultural se define pelo fato de que ela não se opõe outra coisa de maneira clara a essa aura [da obra de arte], mas que ela se serve dessa aura em estado dedecomposição como um círculo de névoa".

Enfim... o meu ponto principal é levantar o questionamento especialmente àqueles que se dedicam à atividade intelectual e criativa e que já se sentiram encurralados pela pressão mercadológica (indústria cultural). 

(...) Hoje, a indústria cultural aciona estímulos e holofotes deliberadamente vesgos e é preciso uma pesquisa acurada para descobrir que o mundo cultural não é apenas formado por produtores e atores que vendem bem no mercado. Ora, este se auto-sustenta cada vez mais artificialmente mantido, engendrando gênios onde há medíocres (embora também haja gênios) e direcionando o trabalho criativo para direções que não são sempre as mais desejáveis. (...)
Nessas condições, é frequente que as manifestações genuínas da cultura, aquelas que têm obrigatoriamente relação com as coisas profundas da terra, sejam deixadas de lado como rebotalho ou devam se adaptar a um gosto duvidoso, dito cosmopolita, de forma a atender aos propósitos de lucro dos empresários culturais. Mas cosmopolitismo não é forçosamente universalismo e pode ser apenas servilidade a modelos e modas importados e rentáveis.
Nas circunstâncias atuais, não é fácil manter-se autêntico e o chamamento é forte a um escritor, artista ou cientista para que se tornem funcionários de uma dessas indústrias culturais. A situação que desse modo se cria é falsa, mas atraente, porque a força de tais empresas instila nos meios de difusão, agora mais maciços e impenetráveis, mensagens publicitárias que são um convite ao triunfo da moda sobre o que é duradouro. É assim que se cria a impressão de servir a valores que, na verdade, estão sendo negados, disfarçando através de um verdadeiro sistema bem urdido de caricaturas, uma leitura falseada do que realmente conta. (...)
Quem é gênio verdadeiro, quem é canastrão diplomado? Há quem possa ser gênio e mercadoria sem ser ao mesmo tempo gênio e canastrão, mas essa distinção não exclui a generalidade da impostura com que alhos e bugalhos se confundem. (...)
Como assegurar aos jovens que o seu esforço receberá, um dia, o reconhecimento? Esse é um grave problema do trabalho intelectual em geral e das tarefas especificamente culturais em particular, em tempos de globalização, sobretudo nos regimes neoliberais como o nosso.

Milton Santos. Da cultura à indústria cultural. 2000. Link 

quarta-feira, 27 de agosto de 2014

Vilém Flusser, Wittgenstein e Kafka

"A um tempo com felicidade e com tremor a gente se reconhecia em Wittgenstein como um companheiro. Mas como companheiro que pertencia a uma geração precedente, e portanto com problemática diferente. Era irmão de Kafka, e o Tractatus era complemento de O processo. De repente tornou-se óbvio que Wittgenstein e Kafka exigiam, imperiosamente, respossta. Para se compreender isto, é preciso formular o que aqueles dois diziam naquele momento. No fundo reformulavam o problema kantiano da relação entre a razão pura e a razão prática de maneira violenta. Afirmavam que a razão pura é sistema fechado, absurdo e que gira em ponto morto em torno de um eixo, sistema este em aparente expansão, mas na realidade em constante retorno sobre si mesmo. E afirmavam que a razão prática é inteiramente inacessível à razão pura, que portanto não pode ser analisada, e que a "vida" consiste de vivência incompreensíveis, inexplicáveis, impensáveis e, em consequência, não-significativas. Em Wittgenstein isto se articulava pela afirmativa de que o pensamento puro resulta sempre ou em contradição ou em tautologia, e que é preciso calar-se quando se trata de "fatos". Em outros termos: que pensar, ler, escrever e falar são fugas rumo ao nada. Wittgenstein era positivista radical: negava que se possa pensar qualquer coisa positiva. Em Kafka o mesmo se articulava pela afirmava de que pensar é pecar porque gira em roda infernal, roda esta que não toca a realidade, a qual, em sua estupidez impensável, nos tritura. Em outros termos: toda tentativa de orientarmo-nos na realidade (tentativa à qual estamos condenados pela praga do pensamento) necessariamente acaba em desespero."
Vilém Flusser. Bodenlos, uma autobiografia filosófica. Páginas 57-58.
São Paulo. Editora Annablume.

terça-feira, 26 de agosto de 2014

Indiferença

"Era necessário distinguir as dimensões individuais das sociais. Ter perdido a pátria, a família e a posição não bastava, aparentemente, para destruir o fundamento. Era preciso também ter perdido o estudo da filosofia, a possibilidade de seguir a vocação de escritor, e a fé no marxismo. Só quando as duas componentes se juntam é que o fundamento cede. E quando isto se dá, é preciso que se esconda o novo entusiasmo que isto cria. O entusiasmo da observação distanciada. Não é a desvalorização dos valores, nem muito menos a transvalorização dos valores, mas a indiferença dos valores. Tudo é indiferente, portanto tudo tem o mesmo valor para ser observado. Isto entusiasma. Os nazistas são tão interessantes quanto as formigas, a física nuclear tanto quanto a Idade Média inglesa, o próprio futuro tanto quanto o futuro da parapsicologia. Isto lembrava Schopenhauer. Mas lembrava também a atitude científica e o inferno. Abria horizontes. Abria, por exemplo, a cultura inglesa e a americana, até então ignoradas. Mas abria mais radicalmente a convicção de que todo provincianismo é enquadramento. Não importa se praguense ou londrina, a gente é provinciana se tem fundamento. Mas quem foi arrancado da ordem vê o mundo todo."
Vilém Flusser. Bodenlos. Uma autobiografia filosófica. Pg. 44.
Editora Annablume.

quarta-feira, 20 de agosto de 2014

Vilém Flusser: especialistas x generalistas

Em um ensaio pouco lido, publicado em 1991, Flusser estabeleceu de maneira cabal seu status como um praticante dos estudos culturais. Em "Äestetisches Erziehung" - "A educação estética" -, à página 124, o filósofo leva-nos a considerar o sujeito paleolítico que despertou para se tornar um uomo universale de modo que ninguém tivesse de se incomodar mais com a "divisão clássica entre os assim chamados três 'ideais': a verdade, o bem e a beleza".
Entretanto, com muito mais informação acumulada, o conhecimento do ser humano tornou-se especializado por padrão, e ninguém mais pôde ser considerado capacitado a ser "competente para a cultura inteira". Flusser não identificou especialização como um problema: a especialização seria necessária para facilitar o controle e a administração de massas de informação sobre a cultura. O que ele tinha era problema com a palavra "competente".
De acordo com Vilém Flusser, à página 126 do mesmo texto, generalistas devem ser educados com a ajuda de memórias artificiais, porque as metas da educação não são "filósofos contemplativos mas sim produtores ativos de informação nova, ou seja, participantes ocupados em acumular mais cultura". Referindo-se à estética como o ensino da experiência ("Erleben"), Flusser veemente advogou por um trabalho trans- e interdisciplinar, considerando-o como uma "criação dialógica e intersubjetiva".

Vilém Flusser: uma introdução - Vilém Flusser e os estudos culturais, de Anke Finger. Pg. 58
Editora Annablume. 2008.

segunda-feira, 4 de agosto de 2014

A pensar: Sobre a conversação ocidental

"Estamos conversando sempre mais rigorosamente sobre sempre menos - e estamos conversando não para conversar, mas sim para polemizar. Não somos críticos, mas propagandistas. Com efeito, a conversação ocidental não se está desenvolvendo, mas se propagando na direção do mutismo".
Vilém Flusser - A Dúvida (Editora Annablume, 2011, p.110)

terça-feira, 29 de julho de 2014

Flusser: A Dúvida (A teia, o pensamento, a realidade)

"A teia dos pensamentos se afigura como uma camada que se interpõe entre o Eu e a realidade, tapando a visão da realidade, apresentando indiretamente essa realidade e o Eu, e representando essa realidade para o Eu. As palavras "tapar'', "presentear" e "representar" são homônimas em alemão, a saber, vorstellen. A teia dos pensamentos é aquilo que Schopenhauer chama de Vorstellung. A teia dos pensamentos é, então, aquele véu tecido de ilusões que deve ser rasgado de acordo com o ensinamento hindu, e que lá é chamado de maia."
p.41

"Os psicólogos comparativos afirmam, ao tentar explicar o mundo efeito das aranhas, que esse mundo se reduz a acontecimentos que se dão nos fios da teia. Acontecimentos que se dão nos intervalos entre os fios da teia não participam do mundo efetivo (real = wirklich) da aranha, mas são potencialidades, são o vir-a-ser da aranha. São o fundo inarticulado, caótico, "metafísico", de uma aranha filosofante. A aranha-filosófo afirma, nega ou duvida dos acontecimento metateicos, a aranha-poeta os intui, a aranha-criadora se esforça por precipitar tudo sobre os fios da teia, para tudo compreender e devorar, e a aranha-mística se precipita para dentro dos intervalos da teia para, numa união mística, fundir-se no todo e libertar-se das limitações da teia. A aranha é um animal sumamente grato à psicologia comparativa, porque dispõe de uma teia visível; os demais animais, inclusive o homem, devem contentar-se com teias invisíveis. A teia do homem consiste de frases, a forma (Gestalt) da teia humana é a frase. Visualizando a frase estaremos visualizando a teia do mundo efetivo, real, wirklich para o homem, estaremos visualizando a estrutura da "realidade"."
p.57

Vilém Flusser. A Dúvida. Editora Annablume. São Paulo, 2011.

domingo, 12 de janeiro de 2014

Helnwein e o poder da imagem

Peinlich (Embarrassing), 1971, aquarela, lápis de cor, lápis e tinta em papel 35 cm x 60 cm


 Nos anos 1970, eu fiz uma exposição na Vienna Pressehaus. Por conta dela, ocorreu uma comoção, um tumulto - os funcionários protestaram. Depois de três dias, a exposição foi fechada. Ouvi que ocorreu uma disputa entre os funcionários e a gestão que gerou a ameaça de uma greve caso as obras não fossem removidas. Eu falei com um editor de um jornal conservador, que estava muito perturbado e insistiu em falar comigo. Ele disse: "Por que você faz essas pinturas horríveis? Você deve ser maluco. Elas ficam na minha cabeça, não consigo dormir mais". Eu perguntei a ele se ele havia lutado na Guerra, e ele confirmou. Perguntei: "Você viu pessoas morrerem?". Ele disse: "É claro". "E você pôde dormir?". "Certamente", ele disse. "Era a guerra". Eu perguntei se ele havia matado pessoas. "Talvez", ele disse. "E isso tirou o seu sono?", eu perguntei. "Não". Então eu disse: "Mas certamente você sempre verá em seu escritório fotografias que são também terríveis de publicar?". "É verdade", ele respondeu. Eu perguntei se ele perdeu o sono por isso. "Não. Isso é a realidade". Então eu entendi. Disse a ele: "Não é estranho que minhas pinturas, nada mais que papel cartão com alguns miligramas de pintura, um pouco de goma de árvore para a liga, nada mais, pura ficção, possam tirar o seu sono? Que você não possa esquecê-las?". E nesse momento eu entendi que não era a minha obra que fazia as pessoas incomodadas e tristes. Eram as próprias imagens dentro de suas cabeças. Eu entendi que minhas pinturas aparentemente desencadeavam algo em seu subconsciente. Mas as imagens carregadas em suas mentes causavam o transtorno.¹
Gottfried Helnwein (Silence of Innocence, Claudia Schmid)



¹In the early 70s I had an exhibition in the Vienna Pressehaus. Caused by the exhibition, riotous commotion occurred - the employees protested. After three days the exhibition was closed. I heard that the dispute between the staff and management had let to the trade union threatening to put on a strike to remove the works. I spoke to an editor of a conservative newspaper, who was very upset and insisted to talk to me. He said: "Why do you make these horrible pictures? You must be crazy. They stay in my mind, I can't sleep anymore". I asked him, if he'd been fought in the last War, which he confirmed. I asked: "Have you seen people die?". He said: "Of course". "And could you sleep?". "Sure", he said. "It was war". I asked if he'd killed people. "Maybe", he said. "Does that rob you of your sleep?", I asked. "No". Then I said: "But surely you will often get to see photos in your newsroom, which are too terrible to print?". "True", he replied. I asked if he lost sleep over it. "No. That's reality". Then I understood. I said to him: "Isn't it strange that my paintings, nothing more than cardboard with a few milligrams of paint on it, a bit of tree gum for bonding, no more, pure figments, that they can rob you of your sleep? That you can't forget them?". At this moment I realized that it was not my work, which got people worried and upset. It was their own images inside their heads. I understood that my pictures apparently triggered something in their subconsciousness. But the images they carried in their own minds caused the upset.

terça-feira, 10 de dezembro de 2013

Gottfried Helnwein: O artista como antagonista da sociedade


"Como artista, você deve procurar a solidão, por dentro. Em algum momento, você deve superar as convenções, essas doutrinas, tudo que não faz sentido e seguir seu próprio caminho. Não há saída. Assim, o artista será sempre, até certo ponto, o antagonista da sociedade. Ele sempre parecerá suspeito. Sempre estará nos limites da ilegalidade ou pelo menos do embaraço. É inevitável. Mas um artista também vive dentro da sociedade, e seus trabalhos refletem essa sociedade, o tempo, seus medos, seus desejos, a loucura, a falta de sentido, expressando isso em sua arte. Então ele precisa estar firmemente enraizado em sua sociedade. O artista anda por uma corda bamba entre a criação de seu próprio universo fora da sociedade, enquanto permanece até certo ponto dentro dela. Essa é a grande questão... é o trabalho de Sísifo de cada artista."
Gottfried Helnwein. Silence of Innocence (Claudia Schmid, 2009)


"As an artist you must seek solitude, inside. At some stage you must overcome these conventions, overcome these dictates, this nonsense and go your own way. There is no escape. Therefore the artist will always be to some extent the antagonist of society. He'll always seem suspect. He'll always be bordering on illegality, or at least on embarrassment. It's inevitable. But an artist also lives within society, and his work reflects this society, time, its fears, its desires, the madness, the nonsense, expressing it in his art. So he must also be firmly rooted in society. The artist performs a tight-rope walk between creating his own universe outside society, while remaining to some extent within society. That's the great issue... the Sisyphus task of every artist."

domingo, 4 de março de 2012

Nosso Programa

"Na política trata-se de liberdade, de emancipação do homem dos motivos de outros homens. Na política, portanto, o único pensamento apropriado é o finalístico. O desafio representado pela visão programática é pois a necessidade deaprendermos a pensar a-politicamente, se quisermos preservar a liberdade. Isto é paradoxo. Porque se continuarmos a pensar politicamente, finalisticamente, se continuarmos a procurar por motivos por detrás dos programas que nos regem, cairemos fatalmente vítimas da programação absurda, a qual prevê precisamente tais tentativas de "desmitização" como uma de suas virtualidades.

Podemos observar sempre melhor como o comportamento do indivíduo e da sociedade vai sendo programado por diferentes aparelhos. E podemos observar, além disto, o comportamento dos "instrumentos inteligentes", dos quais conhecermos os programas, e nos quais reconhecemos nosso próprio comportamento. (...) Há programadores. Mas a despeito disto: se persistirmos em pensar finalisticamente, se continuarmos a procurar desencobrir os programadores por detrás dos programas, e desmistificar seus motivos, perdermos de vista o que é essencial na cena. (...) Porque o essencial na cena é o fato que os programas, embora projetados por programadores, se autonomizam. Os aparelhos funcionam sempre mais independentemente dos motivos dos seus programadores. (...) A própria programação humana vai sendo programada por aparelhos. Por certo: determinados programadores se julgam, subjetivamente, "donos" das decisões e dos aparelhos. Mas, na realidade, não passam de funcionários programados para assim se julgarem. (...) Ambos, programadores e críticos, vão sendo recuperados pelos aparelhos. A liberdade morrerá se continuarmos a pensar politicamente, e a agir em função de tal pensamento.

Não devemos nem antropomorfizar nem objetivar os aparelhos. Devemos captá-los em sua concreticidade cretina de um funcionamento programado, absurdo. A fim de podermos compreendê-los e destarte inseri-los em metaprogramas. O paradoxo é que tais metaprogramas são jogos igualmente absurdos. Em suma: o que devemos aprender é a assumir o absurdo, se quisermos emancipar-nos do funcionamento. A liberdade é concebível apenas enquanto jogo do absurdo com aparelhos. Enquanto jogo com programas. É concebível apenas depois de termos assumido a política, e a existência humana em geral, enquanto jogo absurdo. Depende de se aprenderemos em tempo de sermos tais jogadores, se continuarmos a sermos "homens", ou se passaremos a ser robôs: se seremos jogadores ou peças do jogo."

Trecho do livro Pós-História, de Vilém Flusser. Capítulo "Nosso Programa"