quarta-feira, 27 de agosto de 2014

Vilém Flusser, Wittgenstein e Kafka

"A um tempo com felicidade e com tremor a gente se reconhecia em Wittgenstein como um companheiro. Mas como companheiro que pertencia a uma geração precedente, e portanto com problemática diferente. Era irmão de Kafka, e o Tractatus era complemento de O processo. De repente tornou-se óbvio que Wittgenstein e Kafka exigiam, imperiosamente, respossta. Para se compreender isto, é preciso formular o que aqueles dois diziam naquele momento. No fundo reformulavam o problema kantiano da relação entre a razão pura e a razão prática de maneira violenta. Afirmavam que a razão pura é sistema fechado, absurdo e que gira em ponto morto em torno de um eixo, sistema este em aparente expansão, mas na realidade em constante retorno sobre si mesmo. E afirmavam que a razão prática é inteiramente inacessível à razão pura, que portanto não pode ser analisada, e que a "vida" consiste de vivência incompreensíveis, inexplicáveis, impensáveis e, em consequência, não-significativas. Em Wittgenstein isto se articulava pela afirmativa de que o pensamento puro resulta sempre ou em contradição ou em tautologia, e que é preciso calar-se quando se trata de "fatos". Em outros termos: que pensar, ler, escrever e falar são fugas rumo ao nada. Wittgenstein era positivista radical: negava que se possa pensar qualquer coisa positiva. Em Kafka o mesmo se articulava pela afirmava de que pensar é pecar porque gira em roda infernal, roda esta que não toca a realidade, a qual, em sua estupidez impensável, nos tritura. Em outros termos: toda tentativa de orientarmo-nos na realidade (tentativa à qual estamos condenados pela praga do pensamento) necessariamente acaba em desespero."
Vilém Flusser. Bodenlos, uma autobiografia filosófica. Páginas 57-58.
São Paulo. Editora Annablume.

terça-feira, 26 de agosto de 2014

Indiferença

"Era necessário distinguir as dimensões individuais das sociais. Ter perdido a pátria, a família e a posição não bastava, aparentemente, para destruir o fundamento. Era preciso também ter perdido o estudo da filosofia, a possibilidade de seguir a vocação de escritor, e a fé no marxismo. Só quando as duas componentes se juntam é que o fundamento cede. E quando isto se dá, é preciso que se esconda o novo entusiasmo que isto cria. O entusiasmo da observação distanciada. Não é a desvalorização dos valores, nem muito menos a transvalorização dos valores, mas a indiferença dos valores. Tudo é indiferente, portanto tudo tem o mesmo valor para ser observado. Isto entusiasma. Os nazistas são tão interessantes quanto as formigas, a física nuclear tanto quanto a Idade Média inglesa, o próprio futuro tanto quanto o futuro da parapsicologia. Isto lembrava Schopenhauer. Mas lembrava também a atitude científica e o inferno. Abria horizontes. Abria, por exemplo, a cultura inglesa e a americana, até então ignoradas. Mas abria mais radicalmente a convicção de que todo provincianismo é enquadramento. Não importa se praguense ou londrina, a gente é provinciana se tem fundamento. Mas quem foi arrancado da ordem vê o mundo todo."
Vilém Flusser. Bodenlos. Uma autobiografia filosófica. Pg. 44.
Editora Annablume.

quarta-feira, 20 de agosto de 2014

Vilém Flusser: especialistas x generalistas

Em um ensaio pouco lido, publicado em 1991, Flusser estabeleceu de maneira cabal seu status como um praticante dos estudos culturais. Em "Äestetisches Erziehung" - "A educação estética" -, à página 124, o filósofo leva-nos a considerar o sujeito paleolítico que despertou para se tornar um uomo universale de modo que ninguém tivesse de se incomodar mais com a "divisão clássica entre os assim chamados três 'ideais': a verdade, o bem e a beleza".
Entretanto, com muito mais informação acumulada, o conhecimento do ser humano tornou-se especializado por padrão, e ninguém mais pôde ser considerado capacitado a ser "competente para a cultura inteira". Flusser não identificou especialização como um problema: a especialização seria necessária para facilitar o controle e a administração de massas de informação sobre a cultura. O que ele tinha era problema com a palavra "competente".
De acordo com Vilém Flusser, à página 126 do mesmo texto, generalistas devem ser educados com a ajuda de memórias artificiais, porque as metas da educação não são "filósofos contemplativos mas sim produtores ativos de informação nova, ou seja, participantes ocupados em acumular mais cultura". Referindo-se à estética como o ensino da experiência ("Erleben"), Flusser veemente advogou por um trabalho trans- e interdisciplinar, considerando-o como uma "criação dialógica e intersubjetiva".

Vilém Flusser: uma introdução - Vilém Flusser e os estudos culturais, de Anke Finger. Pg. 58
Editora Annablume. 2008.

segunda-feira, 11 de agosto de 2014

O Amor em Tempos Tecnológicos: Ela na Solidão


Nessa segunda-feira, dia 11 de agosto, fui conferir na FEA-USP, o primeiro seminário do ciclo intitulado A Vida Hoje: Amor, Arte, Política, promovido pelo Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo. O debate O Amor em Tempos Tecnológicos: Ela na Solidão recebeu esse nome justamente por ser inspirado no filme Her (2013), de Spike Jonze. O longa foi debatido pelos professores Renato Janine Ribeiro (FFLCH), Massimo Canevacci (Università degli Studi di Roma La Sapienza/IEA) e Olgária Matos (FFLCH).

Canevacci foi o primeiro a expor sua opinião, comentando o aspecto metamórfico presente no filme como um reflexo da cultura e da tecnologia contemporâneas. Segundo ele, essa característica vem desde a cultura greco-romana, com suas mitologias, em que as identidades são mutáveis, e hoje vemos a transformação do corpo vegetal para o corpo humano e do corpo pixel. Desse modo, existe um desejo e uma complexidade em aceitar essa identidade, porque as dicotomias orgânico-inorgânico ou vivo-morto, por exemplo, já não funcionam mais: vivemos além disso.

A prática e a poética atuais pedem por algo além dessa dicotomia, o que Canevacci chama de metafetichismo ou fetichismo digital, uma das correntes que ele vem estudando desde sua obra Fetichismos visuais (Ateliê Editorial, 2008). E essa palavra não vem a acarretar algo perverso, numa conotação freudiana, como o palestrante lembra, mas uma metodologia indisciplinada e que, após a metamorfose, traz desdobramentos como o pós-humano. Isto é, o momento em que o corpo e a tecnologia não podem mais ser enfrentados de maneira clássica.

Para Canevacci, o pós-humano não perdeu a identidade tradicional, mas trouxe mudanças e estas são o desafio que ele propõe: a complexidade digital, o mal-estar da civilização. Her aborda algumas dessas mudanças, cruzando disciplinas e fazendo a relação bodyscape x landscape x voz. Isto é, a relação do rosto de Theodore (Joaquin Phoenix) x Los Angeles (amor à metrópole) x Samantha (voz de Scarlett Johansson).

Há um choque entre o material e o imaterial, entre a fascinação erótica e o corporal, principalmente quando Samantha resolve contratar uma prostituta para intermediar o relacionamento entre os dois e torná-lo corpóreo. O ponto é que, como Canevacci explicou, o fascínio travado entre os personagens vai além do amor e do sexo, mesmo porque, quando Theodore descobre que Samantha possui mais de 800 namorados, o relacionamento desmorona. "Percebam que o título do filme é 'Her' e não 'She', então é um objeto", comenta o professor. E assim como HAL, de 2001: Uma Odisséia no Espaço, de Stanley Kubrick - o qual inclusive compartilha um nome de três letras e iniciado por "H" -, ambos têm que morrer... Mas por que? Segundo Canevacci, tudo isso está associado ao mal estar da civilização.

A tecnologia tenta criar uma racionalidade que nada mais é que a sua própria racionalidade. Ou seja, quando uma tecnologia é pensada, ela é desenhada apenas para ser produtiva, mas nunca sensível ou intuitiva, criativa, artística. Para Canevacci, essas características são cortadas por motivos civilizadores.

De acordo com Canevacci, se por um lado Theodore ama Samantha pela sua ubiquidade, isto é, por estar sempre disponível, sempre presente e ao seu lado e por nunca deixá-lo, por estar além da morte, por ser capaz de servi-lo com uma paixão imortal e ubíqua, em algum ponto, isso, no entanto, é censurado pela civilização ocidental.


Educação sentimental

Renato Janine Ribeiro se focou em como Her propõe ser um filme de educação sentimental, isto é, sobre amor e amizade, sobre relacionamentos. Em primeiro lugar, fazendo comparação aos romances do século XIX, como os de Stendhal e Flaubert, o professor ainda comentou sobre o difícil relacionamento de Amy e seu marido e como eles finalmente se separam diante das diferenças. Em seguida, Ribeiro dissertou sobre o significado dos nomes dos personagens principais, mesmo que Jonze talvez tenha os selecionado por acaso.

Theodore seria a "dádiva de Deus" enquanto Catarina, sua ex-esposa, tem algo a ver com "os puros". Nesse sentido, o protagonista saltaria de um relacionamento sagrado para algo novamente etéreo, sem corpo, como é o caso de Samantha, um sistema operacional (OS) que se resume à voz e que, de acordo com seu nome, significa "quem escuta" - justamente porque é isso também o que melhor faz. Mas Ribeiro lembrou que a primeira atriz que faria a voz da personagem se chamava Samantha, então talvez a escolha do nome não seja assim tão pensada, assim como a de Amy, que significa "amiga", mas que é interpretada por uma atriz chamada Amy Adams.

De qualquer maneira, existe um aprendizado sentimental tanto por parte de Theodore quanto por parte de Samantha, que é um software que evolui como se tivesse um corpo e uma alma. E ela faz isso a partir da relação sexual, tornando-se extremamente customizada. Seu papel na história, segundo Ribeiro, é como um anjo que traz uma boa nova, como um "HAL que vence". E o filme passa a ser sobre as diferentes formas do amor, as quais Ribeiro listou como: filia, eros, pathos, ágape, pragma e ludos. No caso, Her estaria mais para filia e eros, estando estas relacionadas ao amor amigo e ao amor carnal.


Utopias e distopias

Olgária Matos iniciou sua fala comentando sobre a paisagem do filme Her, a qual chama muito a atenção do modo que retrata uma Los Angeles do futuro próximo ao mesmo tempo que usa takes em Shanghai. A professora declarou que as cenas a fizeram pensar em Alphaville por seu aspecto inabitável, transparente: uma paisagem lunar que retrata a utopia da ubiquidade. "Onde estamos quando estamos em todos lugares?", ela perguntou.

Para Olgária, Her trata do mito do amor romântico a partir de um personagem muito delicado, mas retomando narrativas como a do Banquete de Platão, em que há a versão trágica do amor e da separação dos amantes; de Orfeu e Eurídice; de Don Juan. Diferentes versões do amor, todas elas buscando um mesmo desejo pela unidade que, na obra de Spike Jonze, vem como uma voz, assim como Deus apareceu para Moisés. E Olgária recordou uma passagem de Em Busca do Tempo Perdido, de Proust, em que um personagem ouve a voz da vó pelo telefone e assemelha aquele som, à distância, com a morte, com a iminência da perda. E aí estava já, como relacionou a professora, a tecnologia.

Porém, no caso desse livro, havia ainda recursos para se construir uma imagem, enquanto que no filme a presença não é fantasmada. E para presentificar o ausente com a forma digital, explicou Olgária, há o autômato, que vem a ser uma criação do homem, uma autonomização da máquina e uma visão do universo como um relógio. A partir daí, a tecnologia já não é mais vista como uma maneira de se aperfeiçoar os defeitos dos humanos, mas um meio de criação. E assim como Heidegger pontuou, recorda Olgária, a ciência e a tecnologia não pensam, elas fazem e desfazem a fronteira entre o lícito e o ilícito, o real e o imaginário.

Fobia do contato

Olgária mencionou o trabalho de Theodore como escritor de cartas e o emprego das palavras como um invólucro da alma, como um mediador do contato. Sem aquelas cartas, muitas pessoas teriam ainda mais problemas de relacionamento com suas namoradas e esposas, parentes e amigos. O protagonista é responsável por aliviar essas tensões através da escrita e não do contato. Ele tem problemas com isso e, inclusive, não consegue manter um relacionamento com a personagem interpretada por Olivia Wilde.

A professora refletiu sobre o poder ameaçador da massa e sobre a perda da identidade quando dentro dela. Existe, portanto, a fobia do contato e a voz se torna perfeita para a paixão, justamente por não ser necessário nenhum toque físico ou enfrentamento social. Mas Olgária acabou interpretando que quando Samantha e todas as OS se despedem de seus donos e Theodore e Amy se sentam juntos, ao fim do filme, é porque eles também irão se dar uma chance como um casal - interpretação que talvez alguns possam não ter tido.

As perguntas foram abertas àqueles que estavam assistindo à palestra através da internet e também aos que participaram do evento na FEA, sendo que a maioria das questões girou em torno da noção de afetividade.

segunda-feira, 4 de agosto de 2014

A pensar: Sobre a conversação ocidental

"Estamos conversando sempre mais rigorosamente sobre sempre menos - e estamos conversando não para conversar, mas sim para polemizar. Não somos críticos, mas propagandistas. Com efeito, a conversação ocidental não se está desenvolvendo, mas se propagando na direção do mutismo".
Vilém Flusser - A Dúvida (Editora Annablume, 2011, p.110)