"A um tempo com felicidade e com tremor a gente se reconhecia em Wittgenstein como um companheiro. Mas como companheiro que pertencia a uma geração precedente, e portanto com problemática diferente. Era irmão de Kafka, e o Tractatus era complemento de O processo. De repente tornou-se óbvio que Wittgenstein e Kafka exigiam, imperiosamente, respossta. Para se compreender isto, é preciso formular o que aqueles dois diziam naquele momento. No fundo reformulavam o problema kantiano da relação entre a razão pura e a razão prática de maneira violenta. Afirmavam que a razão pura é sistema fechado, absurdo e que gira em ponto morto em torno de um eixo, sistema este em aparente expansão, mas na realidade em constante retorno sobre si mesmo. E afirmavam que a razão prática é inteiramente inacessível à razão pura, que portanto não pode ser analisada, e que a "vida" consiste de vivência incompreensíveis, inexplicáveis, impensáveis e, em consequência, não-significativas. Em Wittgenstein isto se articulava pela afirmativa de que o pensamento puro resulta sempre ou em contradição ou em tautologia, e que é preciso calar-se quando se trata de "fatos". Em outros termos: que pensar, ler, escrever e falar são fugas rumo ao nada. Wittgenstein era positivista radical: negava que se possa pensar qualquer coisa positiva. Em Kafka o mesmo se articulava pela afirmava de que pensar é pecar porque gira em roda infernal, roda esta que não toca a realidade, a qual, em sua estupidez impensável, nos tritura. Em outros termos: toda tentativa de orientarmo-nos na realidade (tentativa à qual estamos condenados pela praga do pensamento) necessariamente acaba em desespero."
Vilém Flusser. Bodenlos, uma autobiografia filosófica. Páginas 57-58.
São Paulo. Editora Annablume.
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