domingo, 1 de fevereiro de 2015

O animal ciente da própria morte

Vigeland Park (Oslo, Noruega)


Conceitos decorrentes da concepção cristã do mundo: a morte. Trecho de transcrição de aula ministrada no curso "A Imagem do Mundo", de Vilém Flusser. Originalmente disponível em FlusserBrasil.
Creio que a famosa frase de Marx "Primeiro comer, depois filosofar" deveria ser reformulada para rezar: "Primeiro aceitar a morte, depois comer, filosofar ou fazer qualquer outra coisa".
Se alguém me for despertar no meio da noite e perguntar, o que distingue o homem do animal, responderia sem refletir: a consciência do homem de sua própria morte. Sem dúvida seria uma resposta irrefletida. Sem dúvida há uma série de distinções mais objetivas entre o animal e o homem. Sem dúvida a consciência de sua própria morte não está sempre presente no consciente despertado. Portanto dizer que o homem é um animal que sabe que vai morrer é uma informação irrefletida. Ela tem, no entanto, uma qualidade que nenhuma reflexão, por matura que seja, consegue produzir: ela tem a qualidade de autenticidade. Irei mais longe e direi que o saber da nossa morte é o único pensamento autêntico do qual somos capazes, todo o resto, todo esse enorme resto de ideias, de vontades, de sentimentos, de imaginações, é pose. É pose em maior e menor grau, é sincero em diluições mais ou menos adulteradas, justamente porque se desenrola diante do pano de fundo inalterável e inexortável da certeza autêntica da morte. A própria certeza da morte torna todo o resto pálido e patológico, uma tentativa desesperada e inautêntica de fugir à morte. E essa situação do homem é que torna tão atraente intelectuamente e sentimentalmente a famosa frase de Heidegger, intraduzível para o português: "Wir sind zum Tode da", que transfiro da seguinte forma: "Vivemos neste momento e sempre para podermos morrer e até a morte".
A psicologia moderna, especialmente a freudiana, insinua, se não o diz abertamente, que tudo aquilo que chamamos de civilização é uma sublimação de um terror reprimido. Em outras palavras, que a civilização é produto de uma doença. Todas as grandes e belas obras do espírito humano, os majestosos edifícios palpáveis da arquitetura tanto quanto os edifícios impalpáveis da ciência, da filosofia, da teologia, e também os edifícios mais transitórios da política e da economia, são outros tantos sintomas da neurose e psicose fundamental: o terror da morte. São sinais da loucura coletiva e individual da humanidade. E esta loucura é resultado da incapacidade do homem de suportar a certeza da morte. Se for a dar crédito aos psicanalistas, diria que o que distingue o homem do animal é o fato do homem saber de sua própria morte e a consequente loucura do homem. Mas se a fuga do homem da morte para a civilização é uma loucura, como dizem os freudianos, ou se é uma mentira, como dizem os existencialistas, então é uma loucura bela e uma mentira grandiosa. Se é assim, não quero sarar, nem quero ter a vivência da autenticidade. Porque sarar da loucura da civilização, desmentir a mentira da cultura, seria volver ao estado são e autêntico da brutalidade animalesca. Sou portanto contrário às tendências modernas de encarar a morte de frente, sou contrário aos ensinamentos filosóficos da moderna psicologia e aos ensinamentos psicológicos da moderna filosofia. Sou reacionário por esperança de que todos esses movimentos atuais, que me parecem bárbaros, são passageiros. Voltará, assim espero, o dia quando a morte reaparecerá em seu aspecto tradicional cristão como porta para a eternidade.

(...)

A situação do homem é absurda. Tudo que ele faz, ou quer, ou sente, ou pensa carece de sentido, porque está condenado de antemão ao nada, à morte. O homem é derrotado em tudo pelo nada e é derrotado não somente na totalidade de sua vida, pela morte, mas também em cada instante individual, pelo nojo. Esse nojo é inevitável, é o produto da certeza da morte e portanto da carência de sentido de qualquer ação, de qualquer pensamento, de qualquer sentimento. É, no entanto, possível aceitar a morte, aceitar o nojo, resolver-se a morrer, resolver-se a viver com o nojo, viver quand-meme, a despeito da morte e do nojo. Nisto reside a autenticidade. A outra possibilidade é recusar-se a morrer, recusar-se a sentir nojo, recusar-se a viver quand-meme. E essa recusa pode tomar a forma de suicídio metafísico, o mergulho na fé, ou a forma do suicídio físico, o mergulho no rio. Nisso reside a decadência, a não-autenticidade. A diferença entre essas duas mentalidades da existência não pode ser discursada, tem que ser vivida.

Confesso que essa ética nojenta e horrorosa é amplamente modificada por diversos pensadores existencialistas, Jaspers por exemplo. Mas essas modificações não me parecem autênticas, se me permitem usar essa palavra depois daquilo que foi dito. Mas o que falta ao existencialismo em força ética compensa pela força estética, pois é no campo do belo e da arte que a autenticidade adquire o seu significado. A interpenetração entre a existência e aquilo que está diante da mão, quando autêntica, não resulta somente em conhecimento, mas resulta, como já disse, na transformação daquilo que esteve diante da mão em instrumento vivido. Em outras palavras, o conhecimento é uma fase de um processo, e a obra de arte é outra fase do mesmo processo, a sabar do processo da vivência dentro da autenticidade. A vida da existência autêntica consiste, por assim dizer, em uma série de vivências criadoras. Tudo aquilo que esteve diante da mão, mas agora se tornou compreendido dentro da existência, isto quer dizer todo o passado de todas as existências autênticas, é testemunha (Zeug und Zeuge) da força criadora da autenticidade.

O conjunto da civilização é testemunha do produto criador da conversação autêntica entre as existências, e como tal, em certo sentido, aniquila a morte. É verdade que as obras não existem no mesmo sentido como existem as existências. Elas estão à mão, não existem sensu stricto, mas na forma de ser que as obras têm elas superam a morte. A estética do existencialismo é, depois de sua epistemologia, o que mais me atrai nessa corrente de pensamento. Creio que há, nessa concepção imediata e vivida do processo da criação artística, o germe para uma nova atitude para com a morte. E será talvez possível, através da estética existencialista, vislumbrar uma nova ontologia, que permitirá enfrentar a morte sem sermos aniquilados por ela.

Para os pensadores da idade moderna, que não repousam sobre a morte, a ética e a estética se relativizam, pulverizam. Não lhes falarei das éticas ocas e sem sangue, sem simpatia e sem pulsação que caracterizam esses professores que nos querem ensinar o bem pelo método matemático com demonstrações com papel e lápis. Perto desses coitados, desses kantianos e benthamitas, desses lockeístas e leibnizistas, com suas concepções do summum bonum e de um Deus necessário e assim por dainte, até a horrível ética dos existencialistas e de seus precursores como Schelling, Schopenhauer e Nietzsche, é tolerável, por ser pelo menos autêntica. Tampouco falarem da estética da idade moderna. Direi somente que com a idade média morreu o último estilo artístico autêntico do ocidente, o estilo gótico, e que o primeiro estilo autêntico ocidental ressurgiu depois da morte do mundo moderno e com o nascer do espírito existencialista, a saber as artes do fim do século dezenove. Não direi o absurdo de que a Europa não produziu obras de arte durante a idade moderna, mas direi que o espírito moderno fez o possível a sufocar a força criadora, que continuou não graças, mas a despeito desse espírito de pergaminho. Os diversos renascimentos e classicismos são prova da mania seca e murcha do espírito ocidental durante a idade moderna, e as grandes obras realizadas durante essa época são prova do vigor criador da Europa a despeito dessa mania. 

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