segunda-feira, 30 de setembro de 2013

Os discursos de Hitler e a culpa coletiva

Eu vi esse post do Update or Die sobre as fotos que Hitler tirava enquanto ensaiava seus discursos, a gestualidade que ele tentava dominar para então reproduzir mais tarde, quando finalmente chegasse ao poder. O fotógrafo Heinrich Hoffman era responsável por fazer as imagens do austríaco e, no final, era encarregado de se desfazer dos negativos das imagens que demonstravam o pior desempenho do futuro ditador. Mas algumas sobreviveram nos arquivos e foram publicadas em seu livro de memórias em 1955.


O autor do texto se pergunta como alguém conseguiu convencer uma nação com idéias tão absurdas como uma raça superior e outras propostas tão surreais. É realmente estranho para nós, latino-americanos nascidos no fim do século XX e vivendo no século XXI entender isso. Eu mesma, como estudante desse tema e totalmente fora da área de história, tenho extrema dificuldade pra entender (e é por isso mesmo que estudo) e é por estarmos nesse contexto mesmo que surgem outras perguntas que, quem esteve lá, não pensou.

Por exemplo, quando estive em maio em Viena, entrevistando o Gottfried Helnwein, perguntei se em algum momento o fato de ele sempre pintar e fotografar crianças loiras, brancas e de olhos claros e abordar a temática do nazismo não pudesse trazer à tona a idéia paradoxal de que ele estivesse também, por causa dessa escolha estética, abordando o arianismo. E não. Ele me disse que entendeu a pergunta, principalmente porque sou de um país de muitas etnias, mas a Áustria (e também a Alemanha) é, ou pelo menos era à sua época, um país predominantemente branco. Disse-me que nunca havia visto um negro, pessoalmente, quando era criança - isso era algo que se via na televisão. Ou seja, enquanto ele me contava isso, na maior naturalidade, soava quase absurdo: meu Deus! Como assim?! Porque aqui no Brasil é tão normal, há tanto tempo temos uma mistura étnica por aqui. Comentou que se ele fosse chinês, provavelmente fotografaria e pintaria apenas crianças chinesas e assim por diante, como também se houvesse a oportunidade de trabalhar com crianças de outras etnias antes, assim como em 2012 pôde fotografar crianças mexicanas, teria feito.

O que quero dizer com isso? Não podemos pensar como brasileiros o que aconteceu com alemães, austríacos e demais europeus. Dificilmente conseguiremos entender o que realmente foi o nazismo sem tê-lo vivido, ainda que dediquemos uma vida de pesquisa e leitura a isso, mas acho interessante, por exemplo, o que li sobre a questão da culpa coletiva em Jung. Em 1945, o psiquiatra suíço escreveu um artigo chamado Depois da catástrofe no qual ele analisou o sentimento que deu o nome de "culpa coletiva", pondo-o como conceito psicológico. Nesse texto, ele explica que a culpa de um ponto de vista jurídico só pode ser circunscrita a quem violou um direito, enquanto que como fenômeno psíquico, contudo, "ela se estende para além dos limites espaciais e humanos. Um bosque, uma casa, uma família, e até mesmo uma aldeia em que tenha ocorrido um crime sente internamente a culpa psíquica além de ser acusada externamente" (JUNG, 1988, p.18).

E é engraçado que nesse artigo Jung diz que como suíço, no entanto, ele não se vê como cúmplice do nazismo. Diz que os Europeus se punham assim, jogando a culpa das barbaridades da guerra para os alemães apenas, ainda que houvesse um campo de concentração a duzentos quilômetros dali. No entanto, como ele próprio exemplifica, se um hindu que viesse da Ásia e conversasse com ele sobre o assunto, o teria como simplesmente um europeu e as distâncias entre os continentes tornariam os duzentos quilômetros entre a Suíça e Auschwitz irrelevantes.

O mundo discrimina a Europa porque, em última instância, foi em seu solo que cresceram os campos de concentração. A Europa, por sua vez, segrega a Alemanha, apontando as nuvens de culpa que recobrem esse país e o seu povo, pois foi na Alemanha e pelos alemães que tudo isso aconteceu. Nenhum alemão pode negar, da mesma forma que nenhum europeu ou cristão, que o crime mais terrível de todos os tempos foi cometido em sua casa. A Igreja cristã pode cobrir com cinzas a cabeça e rasgar as vestes pela culpa de seus filhos, mas as sombras dessa culpa recaíram sobre eles e sobre toda a Europa, a mãe dos monstros. Da mesma maneira que a Europa precisa ajustar contas com o mundo, a Alemanha deve fazê-lo em relação à Europa. (...) A culpa coletiva psicológica é uma fatalidade trágica; atinge a todos, justos ou injustos, que, de alguma maneira, se encontravam nas proximidades do crime (JUNG, 1988, p.19).

Apesar de Jung acreditar que uma pessoa razoável seja capaz de distinguir entre o sentimento de culpa da verdadeira culpa, isto é, quando o indivíduo realmente cometeu algum delito, o psiquiatra é um tanto pessimista quanto à situação. Isto porque há muita irracionalidade envolvida no processo e quando diz que a culpa coletiva é um preconceito ou uma condenação injusta, Jung não só concorda como também diz que esta é, justamente, a sua essência irracional: "ela jamais se pergunta pelo justo e o injusto, ela é a nuvem sinistra que levanta no lugar de um crime inexpiado" (JUNG, 1988, p.20). Como fenômeno psíquico, a culpa coletiva não condena aqueles que atinge, mas constata um fato.

Para exemplificar uma situação dessas, Jung supõe um homem que vive numa sociedade em que um crime é cometido e acaba suscitando sentimentos apaixonados e interessados por parte do público. Essas emoções demonstram que "praticamente todo mundo, desde que não seja insensível ou apático de forma anormal, é excitado pelo crime. Todos vibram conjuntamente, todos se sentem dentro do crime, tentam compreendê-lo e esclarecê-lo... Algo se acende, o fogo do mal que flameja no crime" (JUNG, 1988, p.21). Citando Platão, o psicanalista suíço lembra que a visão do feio provoca o feio na alma e a indignação diante do crimoso provoca a reação violenta, mas ao mesmo tempo apaixonante, na qual o espectador tenta punir o infrator já dentro da sua própria alma. E, assim, "o assassinato acontece, em parte, dentro de cada um e todos, em parte, o cometeram. Seduzidos pela fascinação irresistível do mal, todos nós possibilitamos, em parte, a matança coletiva em nossas mentes e na razão direta de nossa proximidade e percepção" (Idem).

Ou seja, não precisamos matar alguém com as mãos para poder, em nossas almas (ou mentes), repetir o ato. É a sedução pelo mal, a emergência do Vampyroteuthis sob a forma de romantismo do tipo nazismo, sob a forma de Wotan, de sombra.

Disposições morais fortes, porém, são infelizmente raras. Quando os crimes aumentam, a indignação predomina e o mal se converte em moda. De santo, louco e criminoso todos temos 'estatisticamente' um pouco. Graças à essa condição humana universal existe, em todas as partes, uma sugestibilidade correspondente ou propensão. A nossa época, isto é, os últimos cinquenta anos, preparou o caminho para o crime. Será que, por exemplo, o grande interesse pelos romances policiais não nos parece suspeito? (JUNG, 1988, p.21).

São só alguns pensamentos e algumas amostrinhas do que tenho descoberto durante minhas pesquisas do mestrado. :) Eu já tinha dado uma amostrinha dessas idéias neste post com uma citação dessa obra do Jung, mas aqui desenvolvi um pouco mais, linkando com outras postagens. Espero que tenham gostado.

Referências

JUNG, Carl Gustav. Aspectos do Drama Contemporâneo. Petrópolis: Editora Vozes, 1988

PS: Sobre a teatralidade de Hitler, a forma como ele fazia o discurso e como as pessoas entravam nisso de um ponto de vista oratório, sem entrar no mérito da oratória mesmo e da publicidade, eu acredito que isso tenha muito a ver com a questão do ritual. Agora eu não tenho exatamente referências suficientes para escrever um bom post sobre isso, apesar de ter estudado um pouquinho sobre isso durante a graduação, com ajuda do meu orientador Prof. Dr. José Eugenio de Oliveira Menezes. Conversei justamente sobre isso com uns amigos no fim de semana. Se tiverem interesse sobre isso, posso dar uma lida em algum material e fazer um novo post futuramente, só me deixem saber mesmo.

quinta-feira, 19 de setembro de 2013

The Intrusion, de Gottfried Helnwein, e a fotografia de Salpetriere

Meu orientador da iniciação científica, Prof. Dr. Walter Lima Jr. dizia que quando estamos pesquisando, vemos nossa pesquisa em tudo. E eu tenho essa mania mesmo. Mas hoje as pessoas estavam compartilhando esse artigo sobre os 10 casos mais bizarros de histeria coletiva, no Facebook, aleatoriamente, e por acaso a imagem de divulgação do link era esta:


Infelizmente, a única informação era "reprodução" e o blog de onde eles traduziram o artigo. Mas, felizmente, estamos em 2013 e temos a ferramenta de pesquisa de imagens do Google. E descobri que essa imagem faz parte do livro Invention of Hysteria – Charcot and the Photographic Iconography of the Salpetriere (1982), de Georges Didi-Huberman. Disponível para leitura neste link, trata-se de um livro sobre o caso do hospital Salpetriere, em Paris, que era dirigido pelo neurologista Jean-Martin Charcot. Durante o século XIX foram feitos vários registros fotográficos de pacientes, de modo a tentar entender melhor o que se passava com aquelas pessoas, documentando aquilo que eles chamaram de "histeria".

E coincidentemente esses dias, enquanto estava escrevendo minha dissertação, estava analisando a aquarela The Intrusion (1971), do Gottfried Helnwein.


No início da carreira, Helnwein trabalhava muito com aquarelas de crianças deformadas. Suas imagens eram bem mais agressivas e com conteúdo até um pouco erótico, de certa maneira. Aqui tenho minhas dúvidas se ele chega a fazer alguma alusão à fotografia dos experimentos em Salpetriere, já que seu intuito me parece mais falar sobre os abusos contra as crianças - nos anos 1970, Helnwein se dedicava muito à violência contra a criança, temática pouco abordada na mídia austríaca. Especialmente porque no segundo plano há também um adulto pondo os dedos na boca de um garoto, o que me parece um pouco abusivo e erotizante também. Mas a semelhança me chamou a atenção, de qualquer maneira.

terça-feira, 10 de setembro de 2013

Tese de doutorado sobre Hermann Nitsch e Genesis P-Orridge



Estava aqui escrevendo minha dissertação quando, inevitavelmente, me deparei com algo tão interessante que precisei fazer esse post para compartilhar. Achei uma tese de doutorado que estuda as obras do artista vienense Hermann Nitsch, de quem já falei aqui no blog, comparando com o Helnwein, e com Genesis P-Orridge, da banda Throbbing Gristle, da qual também já comentei mais anteriormente, quando estava estudando a Nachtmahr. Incrível. Incrível mesmo como as coincidências acontecem.

Eu não li a tese, acabei de encontrá-la e dei só uma olhadinha, mas me interessou muito pelo fato de ser uma análise filosófica e psicológica e já vi o nome de Jung ali nas primeiras páginas, o que me deixa muito satisfeita, porque Nitsch sempre evoca Freud em primeiro lugar. Mas tenho quase certeza que vale pelo menos a conferida para quem gosta de música industrial e arte, isto é, para todos que acompanham este blog! O material está disponível para download gratuito.