O autor do texto se pergunta como alguém conseguiu convencer uma nação com idéias tão absurdas como uma raça superior e outras propostas tão surreais. É realmente estranho para nós, latino-americanos nascidos no fim do século XX e vivendo no século XXI entender isso. Eu mesma, como estudante desse tema e totalmente fora da área de história, tenho extrema dificuldade pra entender (e é por isso mesmo que estudo) e é por estarmos nesse contexto mesmo que surgem outras perguntas que, quem esteve lá, não pensou.
Por exemplo, quando estive em maio em Viena, entrevistando o Gottfried Helnwein, perguntei se em algum momento o fato de ele sempre pintar e fotografar crianças loiras, brancas e de olhos claros e abordar a temática do nazismo não pudesse trazer à tona a idéia paradoxal de que ele estivesse também, por causa dessa escolha estética, abordando o arianismo. E não. Ele me disse que entendeu a pergunta, principalmente porque sou de um país de muitas etnias, mas a Áustria (e também a Alemanha) é, ou pelo menos era à sua época, um país predominantemente branco. Disse-me que nunca havia visto um negro, pessoalmente, quando era criança - isso era algo que se via na televisão. Ou seja, enquanto ele me contava isso, na maior naturalidade, soava quase absurdo: meu Deus! Como assim?! Porque aqui no Brasil é tão normal, há tanto tempo temos uma mistura étnica por aqui. Comentou que se ele fosse chinês, provavelmente fotografaria e pintaria apenas crianças chinesas e assim por diante, como também se houvesse a oportunidade de trabalhar com crianças de outras etnias antes, assim como em 2012 pôde fotografar crianças mexicanas, teria feito.
O que quero dizer com isso? Não podemos pensar como brasileiros o que aconteceu com alemães, austríacos e demais europeus. Dificilmente conseguiremos entender o que realmente foi o nazismo sem tê-lo vivido, ainda que dediquemos uma vida de pesquisa e leitura a isso, mas acho interessante, por exemplo, o que li sobre a questão da culpa coletiva em Jung. Em 1945, o psiquiatra suíço escreveu um artigo chamado Depois da catástrofe no qual ele analisou o sentimento que deu o nome de "culpa coletiva", pondo-o como conceito psicológico. Nesse texto, ele explica que a culpa de um ponto de vista jurídico só pode ser circunscrita a quem violou um direito, enquanto que como fenômeno psíquico, contudo, "ela se estende para além dos limites espaciais e humanos. Um bosque, uma casa, uma família, e até mesmo uma aldeia em que tenha ocorrido um crime sente internamente a culpa psíquica além de ser acusada externamente" (JUNG, 1988, p.18).
E é engraçado que nesse artigo Jung diz que como suíço, no entanto, ele não se vê como cúmplice do nazismo. Diz que os Europeus se punham assim, jogando a culpa das barbaridades da guerra para os alemães apenas, ainda que houvesse um campo de concentração a duzentos quilômetros dali. No entanto, como ele próprio exemplifica, se um hindu que viesse da Ásia e conversasse com ele sobre o assunto, o teria como simplesmente um europeu e as distâncias entre os continentes tornariam os duzentos quilômetros entre a Suíça e Auschwitz irrelevantes.
O mundo discrimina a Europa porque, em última instância, foi em seu solo que cresceram os campos de concentração. A Europa, por sua vez, segrega a Alemanha, apontando as nuvens de culpa que recobrem esse país e o seu povo, pois foi na Alemanha e pelos alemães que tudo isso aconteceu. Nenhum alemão pode negar, da mesma forma que nenhum europeu ou cristão, que o crime mais terrível de todos os tempos foi cometido em sua casa. A Igreja cristã pode cobrir com cinzas a cabeça e rasgar as vestes pela culpa de seus filhos, mas as sombras dessa culpa recaíram sobre eles e sobre toda a Europa, a mãe dos monstros. Da mesma maneira que a Europa precisa ajustar contas com o mundo, a Alemanha deve fazê-lo em relação à Europa. (...) A culpa coletiva psicológica é uma fatalidade trágica; atinge a todos, justos ou injustos, que, de alguma maneira, se encontravam nas proximidades do crime (JUNG, 1988, p.19).
Apesar de Jung acreditar que uma pessoa razoável seja capaz de distinguir entre o sentimento de culpa da verdadeira culpa, isto é, quando o indivíduo realmente cometeu algum delito, o psiquiatra é um tanto pessimista quanto à situação. Isto porque há muita irracionalidade envolvida no processo e quando diz que a culpa coletiva é um preconceito ou uma condenação injusta, Jung não só concorda como também diz que esta é, justamente, a sua essência irracional: "ela jamais se pergunta pelo justo e o injusto, ela é a nuvem sinistra que levanta no lugar de um crime inexpiado" (JUNG, 1988, p.20). Como fenômeno psíquico, a culpa coletiva não condena aqueles que atinge, mas constata um fato.
Para exemplificar uma situação dessas, Jung supõe um homem que vive numa sociedade em que um crime é cometido e acaba suscitando sentimentos apaixonados e interessados por parte do público. Essas emoções demonstram que "praticamente todo mundo, desde que não seja insensível ou apático de forma anormal, é excitado pelo crime. Todos vibram conjuntamente, todos se sentem dentro do crime, tentam compreendê-lo e esclarecê-lo... Algo se acende, o fogo do mal que flameja no crime" (JUNG, 1988, p.21). Citando Platão, o psicanalista suíço lembra que a visão do feio provoca o feio na alma e a indignação diante do crimoso provoca a reação violenta, mas ao mesmo tempo apaixonante, na qual o espectador tenta punir o infrator já dentro da sua própria alma. E, assim, "o assassinato acontece, em parte, dentro de cada um e todos, em parte, o cometeram. Seduzidos pela fascinação irresistível do mal, todos nós possibilitamos, em parte, a matança coletiva em nossas mentes e na razão direta de nossa proximidade e percepção" (Idem).
Ou seja, não precisamos matar alguém com as mãos para poder, em nossas almas (ou mentes), repetir o ato. É a sedução pelo mal, a emergência do Vampyroteuthis sob a forma de romantismo do tipo nazismo, sob a forma de Wotan, de sombra.
Disposições morais fortes, porém, são infelizmente raras. Quando os crimes aumentam, a indignação predomina e o mal se converte em moda. De santo, louco e criminoso todos temos 'estatisticamente' um pouco. Graças à essa condição humana universal existe, em todas as partes, uma sugestibilidade correspondente ou propensão. A nossa época, isto é, os últimos cinquenta anos, preparou o caminho para o crime. Será que, por exemplo, o grande interesse pelos romances policiais não nos parece suspeito? (JUNG, 1988, p.21).
São só alguns pensamentos e algumas amostrinhas do que tenho descoberto durante minhas pesquisas do mestrado. :) Eu já tinha dado uma amostrinha dessas idéias neste post com uma citação dessa obra do Jung, mas aqui desenvolvi um pouco mais, linkando com outras postagens. Espero que tenham gostado.
Referências
JUNG, Carl Gustav. Aspectos do Drama Contemporâneo. Petrópolis: Editora Vozes, 1988
PS: Sobre a teatralidade de Hitler, a forma como ele fazia o discurso e como as pessoas entravam nisso de um ponto de vista oratório, sem entrar no mérito da oratória mesmo e da publicidade, eu acredito que isso tenha muito a ver com a questão do ritual. Agora eu não tenho exatamente referências suficientes para escrever um bom post sobre isso, apesar de ter estudado um pouquinho sobre isso durante a graduação, com ajuda do meu orientador Prof. Dr. José Eugenio de Oliveira Menezes. Conversei justamente sobre isso com uns amigos no fim de semana. Se tiverem interesse sobre isso, posso dar uma lida em algum material e fazer um novo post futuramente, só me deixem saber mesmo.
Um visão histórica - Antes da 2ª Guerra mundial, regimes totalitários/fascistas dominavam o cenário político da Europa. Muita gente buscava nessa vertente política a recuperação das economias e de orgulhos nacionais abalados desde a 1ª Guerra Mundial. De fato, a Alemanha foi a grande perdedora da Grande Guerra. Consequências do Tratado de Viena: derrota humilhante; territórios tomados; exércitos aniquilados; orgulho ferido. A inflação da Alemanha atingiu níveis insustentáveis, em que milhões de marcos valiam 1 dólar. Hitler foi o catalisador de todo esse sentimento, de todo um rancor. Foi a "vontade de potência" que faltava para recuperar o espaço vital alemão na Europa (lebensraum). Essa vaga ideológica cativou até pensadores como o filósofo Martin Heidegger. O consciente coletivo europeu embarcou nessa onda nazi-fascista - classificada como extrema-direita, apesar de o partido nazista ser um movimento de trabalhadores, nacional-socialista alemão! Os europeus sabem que, mesmo não participando diretamente, mesmo longe dos campos de concentração e do extermínio, deixaram a verve totalitária crescer no seio da Europa. Até no Brasil houve simpatizantes à época. O governo de Vargas flertava com políticas que se aproximavam do fascismo e do nazismo - nazismo = fascismo + racismo. No Brasil, tínhamos, em 1932, a Ação Integralista Brasileira, partido filo-fascista. Então, era todo um sentimento de consciência coletiva da época. Hitler foi o extremo disso, o horror ao máximo. A Europa traz consigo a consciência histórica. Espero que tenhamos evoluído...
ResponderExcluirVale lembrar que não só os brasileiros seguiram nesse ritmo como também os japoneses, que fizeram parte do Eixo também. E quem quiser ler um pouco mais sobre essa tendência, vale dar uma olhada no livro Os Alemães, de Norbert Elias.
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