terça-feira, 18 de novembro de 2014

Conversa fiada

A conversação ocidental atingiu o estágio de ritualização no qual a oração ora não mais sobre o inarticulável, mas sobre si mesmo. No presente estágio da conversação ocidental, o ritual da festa do pensamento tornou-se seu mito. A oração adora a si mesma e ora sobre si mesma. Os nomes próprios, à medida que aparecem, não são mais aceitos como mitos a serem ritualizados, mas como ritos a serem incluídos no ritual sempre crescente. O ritual é a finalidade da festa inautêntica que é a conversa fiada. A experiência exuberante e terrificante evaporou-se: a conversação tornou-se tediosa e nojenta, girando em círculos sem centro - não há significado. A conversação não ora sobre o inarticulável, mas sobre si mesma, procedendo à automitologização. Trata-se de loucura às avessas, justo que chamei de dúvida da dúvida na introdução a este trabalho. Nesse estágio da conversa fiada o intelecto torna-se autossuficiente, porque perdeu o seu centro, a saber, o inarticulável. Está afastado da proximidade. A conversa fiada é a profanação da festa do pensamento; na conversa fiada tudo é profano, portanto, nojento. O mundo da conversa fiada é um cosmos totalmente ritualizado e desmitologizado, calcado absurdamente no rito como mito. É a intelectualização total, que tem por consequência o abandono do intelecto esvaziado de seu teor festivo e tornado nojento.
A conversação científica atual é um belo exemplo dessa conversa fiada. A ciência não ora mais sobre a realidade, sobre o inarticulável, mas sobre si mesma. Os nomes próprios que a intuição poética verte sobre a conversação científica, como por exemplo meson e antiproton, não adoram mais o articulável, mas o ritual da conversação científica. A ciência tende a ser autossuficiente, logo, tende a ser nojenta. A experiência festiva tende a evaporar-se na conversação científica, que tende a mergulhar nan loucura às avessas da conversa fiada. A ciênncia duvida não mais da realidade, mas de si mesma: o ritual da ciência é o seu mito. A ciência está se afastando da proximidade do inarticulável, do de tudo diferente; a ciência está se profanizando. A ciência está virando dança sem centro e se afastando do significado. Nesse nível, a conversação ocidental encontra-se ameaçada de estagnação e de mutismo wittgensteiniano.
O que digo a respeito da ciência posso afirmar, com igual pertinência, a respeito da arte, especialmente a respeito da arte chamada abstrata. O rito torna-se mito, a arte se profaniza e torna-se nojenta. Com pertinência menor, mas com validade igualmente assustadora, o mesmo pode ser afirmado a respeito dos demais níveis da conversação ocidental da atualidade. Assistimos a um esvaziamento do caráter festivo do pensamento ocidental, a uma profanização desse pensamento, a um afastar-se do inarticulável. O pensamento ocidental está se afastando da proximidade do de tudo diferente, para girar sobre si mesmo. O espanto primordial, a prostração em face do de tudo diferente, a alienação do de tudo diferente de si mesmo que deu origem ao intelecto, estão toto coelo distantes do pensamento ocidental. O pensamento ocidental está mergulhando na conversa fiada.
O superintelectualismo e o anti-intelectualismo da atualidade são as consequências desse mergulho, mas não as únicas alternativas face ao presente estado das coisas (...).
Vilém Flusser, A Dúvida. Editora Annablume, 2011. P.102-104