sábado, 21 de dezembro de 2013

Vilém Flusser: ?

Devo confessar que entre todos os signos existenciais é o "?" aquele que mais significativamente articula, a meu ver, a situação na qual estamos. Creio que pode ser elevado a símbolo da nossa época com justificação maior que qualquer outro. Maior inclusive que a cruz, a foice e o martelo, e a tocha da estátua da liberdade. Mas elevado assim a símbolo deixa de ser, obviamente, o "?" um signo que ocorre em sentenças com sentido. Sofre o destino de todos os símbolos extrassentenciais: é equívoco e nebuloso. Contentemo-nos pois com o "?" como signo que ocorre em sentenças, mas saibamos manter fidelidade ao seu significado. Não será este o papel mais nobre da nossa poesia? Formular sentenças com sentido novo que tenham um significado que lhe é conferido pelo "?" pelo qual acabam? Formulando este tipo de sentenças, rasgará a poesia novas aberturas para um discurso que ameaça acabar em ponto final.

Vilém Flusser. ?.
Publicado originalmente em 22 de outubro de 1966 n'O Estado de São Paulo. Trecho retirado do livro A Dúvida, p.8, 2011, Editora Annablume

domingo, 15 de dezembro de 2013

Udo Kultermann sobre arte política

Udo Kultermann é autor do livro New Realism, publicado em 1972, pela New York Graphic Society. Nesta obra, o historiador da arte escreve sobre hiperrealismo e especificamente no capítulo sobre os aspectos políticos desse gênero, ele abre parênteses para falar sobre o papel da obra de arte dentro da pólis, comparando o artista ao cientista, a forma como este age em relação à atuação científica e técnica, que ele também vislumbra na política.

O curioso desse capítulo é que, no entanto, ele acaba não falando exatamente sobre o hiperrealismo, mas sobre a obra de arte com aspecto político - o que não é o caso do hiperrealismo à época em que ele escrevia. Ele até menciona alguns trabalhos como Riot, de Duane Hanson, e War Protest March, de Audrey Flack, mas assim como seus contemporâneos, estas imagens são apenas registros e não uma "propaganda política". Como o próprio Kultermann analisa, essas pinturas são: "uma tentativa de objetificar a documentação de como o evento em questão realmente aconteceu. O significado político em questão é expressado muito mais pela alta seriedade ao tentar apresentar uma visão altamente disciplinada da realidade" (p.22).

O fotorrealismo, ou hiperrealismo, foi extremamente criticado já à sua época por conta da sua falta de crítica e profundidade, por apenas registrar aquilo que é e sem conter mais nenhum significado a ser desvendado. Alguns estudiosos do gênero, como Linda Chase, chegaram a defender que, no entanto, esta seria a grande inovação: a literalidade, a coisa por ela mesma, uma "filosofia" que já havia se iniciado com o movimento anterior, a Pop Art. Mas outros artistas subsequentes iriam quebrar essa linhagem e "dar sentido" às pinturas hiperrealistas, fosse com enigmas e referências, como no caso de Claudio Bravo, ou então como vemos nas provocações e estímulos das pinturas de Gottfried Helnwein.

De qualquer maneira, Udo Kultermann retorna à pintura dos anos 20 para se referir à arte política e se fazer claro, em seu texto:

Uma comparação com a arte dos anos 20 irá mostrar a diferença: uma obra de arte funcionava então como uma arma política contra um determinado inimigo político, enquanto que hoje uma obra de arte reflete o mais possível autêntico conhecimento do que realmente acontece e existe na realidade. Em contraste à essa arte propagandística, a qual transcende seus próprios limites por conta da ação política, e pela qual ainda é praticada hoje, apenas a complexa e envolvente representação da realidade atinge uma impressão mais profunda e mais duradoura. Assim como Chaim Koppelman diz: "Eu acredito que a arte não é uma fuga da vida. Não existe algo como uma boa obra de arte que apresente uma falsa imagem da realidade".
Num sentido mais básico, a arte política renuncia as possibilidades de mudar as realidades humanas e criar uma nova escala de valores na qual uma situação específica pode originar ações políticas bem estruturadas e responsáveis. No New Realism [hiperrealismo], nas obras de Duane Hanson, por exemplo, uma realidade constituída artisticamente cuja transformação, que é refletida através do dispositivo da ilusão, ensina-nos a ver a outra realidade.
 (...)
Para ambas a ação artística e política, a base para a mudança e para novos conceitos viáveis é inquirir sobre a realidade. Não é simplesmente ignorância, mas a incapacidade de reconhecer e definir o processo de inquirir que tem atrapalhado nossos melhores esforços prévios, formado lideranças irresponsáveis e obscurecido a verdade. São os conceitos e valores ganhos pela pesquisa e pela arte da observação precisa que devem ser determinados pelo curso da história, não armamentos ou exércitos, ou a acumulação de pura técnica, militarização ou poder político.
 Os técnicos e os políticos servem para executar e carregar nossos ideais postulados por artistas, filósofos e cientistas, os quais definem novos valores para a sociedade. Conforme a realidade é definida por esses valores, são sempre as mentes criativas e questionadoras que estão continuamente gerando essas novas realidades. O que nós, como uma sociedade, consumimos é consequência do que nós desejamos; assim, técnicos apenas produzem o que é já considerado nossa necessidade; políticos, também, funcionam principalmente como instrumentos de mandatos parcialmente entendidos.
A responsabilidade de reconhecer e definir esses valores responsivos a essas realidades pertence à toda sociedade e os líderes desse processo de investigação devem ser o artista e o cientista. O cientista comunica esse conhecimento através de hipóteses lógicas e prováveis, enquanto o artista demonstra sua compreensão da realidade através de meios mais subjetivos. Ambos, contudo, dependem da intuição e da percepção, experimento e disciplina, objetividade e formas tangíveis de imagética. O artista também tem efetividade ao iluminar o passado. Isso é alcançado através de seu conhecimento de formas eternas, as quais não depreciam, mas sustentam nossa consciência dos arquétipos (p.23). 
Epiphany III (Presentation at the Temple), 1998, tinta a óleo e acrílica sobre tela. 210 cm x 310 cm
Gottfried Helnwein

"Para mim, arte é a mais alta forma de comunicação, feita esteticamente. A estética da arte é capaz de penetrar em áreas, assuntos os quais você antes desconhecia. Na minha opinião, esse é o papel do artista: oferecer uma oportunidade de mostrar ao mundo a palavra, filtrada pelo próprio mundo do artista, às pessoas."
Gottfried Helnwein (Silence of Innocence, Claudia Schmid)

terça-feira, 10 de dezembro de 2013

Gottfried Helnwein: O artista como antagonista da sociedade


"Como artista, você deve procurar a solidão, por dentro. Em algum momento, você deve superar as convenções, essas doutrinas, tudo que não faz sentido e seguir seu próprio caminho. Não há saída. Assim, o artista será sempre, até certo ponto, o antagonista da sociedade. Ele sempre parecerá suspeito. Sempre estará nos limites da ilegalidade ou pelo menos do embaraço. É inevitável. Mas um artista também vive dentro da sociedade, e seus trabalhos refletem essa sociedade, o tempo, seus medos, seus desejos, a loucura, a falta de sentido, expressando isso em sua arte. Então ele precisa estar firmemente enraizado em sua sociedade. O artista anda por uma corda bamba entre a criação de seu próprio universo fora da sociedade, enquanto permanece até certo ponto dentro dela. Essa é a grande questão... é o trabalho de Sísifo de cada artista."
Gottfried Helnwein. Silence of Innocence (Claudia Schmid, 2009)


"As an artist you must seek solitude, inside. At some stage you must overcome these conventions, overcome these dictates, this nonsense and go your own way. There is no escape. Therefore the artist will always be to some extent the antagonist of society. He'll always seem suspect. He'll always be bordering on illegality, or at least on embarrassment. It's inevitable. But an artist also lives within society, and his work reflects this society, time, its fears, its desires, the madness, the nonsense, expressing it in his art. So he must also be firmly rooted in society. The artist performs a tight-rope walk between creating his own universe outside society, while remaining to some extent within society. That's the great issue... the Sisyphus task of every artist."

sexta-feira, 6 de dezembro de 2013

Gottfried Helnwein: "Eu não me encaixo em nenhum sistema"



Durante a graduação na Academia de Belas Artes em Viena, a mesma que não aceitou Hitler como estudante (e isso, para Helnwein, foi um dos grandes erros dessa instituição na qual ele, inclusive, não graduou), Helnwein organizou uma Aktion que foi tipo uma rebelião com uns amigos (Die Akademie brennt, 1970). Nessa entrevista para a Süddeutsch Zeitung Magazin, ele conta qual foi o contexto. Vou traduzir mais ou menos a resposta dele:

"Aquela era a época certa para revoluções, não havia outras opções. A academia e as universidades pareciam formigueiros. Todas estavam cheias de neomarxistas, maoístas, trotskistas, spartakistas e qualquer outra coisa que eles próprios se insultavam, discutiam dia e noite sobre pôsteres do Che Guevara e sobre a emancipação do proletariado. Ali estavam as crianças ricas de pais burgueses que nunca viram verdadeiros trabalhadores por perto. Os verdadeiros operários, pelo que eu entendia, obviamente viviam num universo paralelo, porque eles, [os estudantes], não tinham idéia do que seria sua iminente liberação do sistema capitalista. E eles também não tinham nenhuma palavra sobre essa incoerência. Eles normalmente tinham noção de outras coisas: carros, futebol, televisão, cerveja e revistas pornográficas.
Para mim ficou bem claro que os debatedores jamais iriam fazer um verdadeiro motim. E eu mesmo permiti que a revolução que eu por tanto tempo esperei começasse. Eu chamei alguns amigos apolíticos e nós tornamos a academia um inferno fumacento. Todos extintores foram ativados, tinta feita por nós mesmos e bombas de fumaça e mau cheiro voavam por todos os lados, pelas janelas e eram jogadas no pátio.
Quando uma centena de policiais cercou o prédio, nós escalamos e fugimos pela janela da cafeteria."