segunda-feira, 23 de fevereiro de 2015

Demência digital: doença ou evolução?

Foto de Stefan Klauke

Entre dispositivos móveis, internet rápida e fácil acesso à informação, o professor de inglês da Universidade de Waterloo Marcel O'Gorman pergunta: o que é demência digital? Em seu artigo Taking Care of Digital Dementia, o pesquisador explica que não existe realmente uma evidência empírica de que a internet e outras mídias estão prejudicando funções cognitivas como a memória e a atenção. Contudo, há vários argumentos que tentam sugerir que as pessoas já não pensam da mesma maneira que o faziam - e isso seria culpa da tecnologia. Conforme explica o pesquisador, há cada vez mais literatura sendo produzida em torno da "demência digital", apesar de o uso desse termo, em específico, ser questionável, uma vez que a demência, em si, é uma condição variável e que não se restringe apenas à perda de memória.

Citando o diálogo entre Sócrates e Thamus, presente no Phaedrus de Platão, O'Gorman aborda a rejeição dos personagens ao dom da escrita, uma vez que a "dependência da tecnologia do alfabeto irá alterar a mente de uma pessoa, e não para melhor". Para Sócrates, a escrita, ao promover a substituição de símbolos externos por memórias internas, ameaça o homem de se tornar um pensador raso à medida que previne a obtenção de um nível intelectual mais profundo, o qual levaria "à sabedoria e à verdadeira felicidade".

Jacques Derrida, contudo, aponta para a ironia da passagem: Sócrates fazia uma crítica aos sofistas e à substituição da memória a partir de um dispositivo que, em si, torna-se uma "prótese para o órgão", sendo isso considerado uma perversão. Isto é, Platão defende que os sofistas estavam usando a tecnologia da escrita como uma forma de mecanizar o discurso filosófico, quando este seria originalmente "decorado" ou espontâneo. Significa que o medo de Thamus em aderir à escrita é de que isso resulte em uma forma de demência, de um "esquecimento na alma dos aprendizes".

Nesse sentido, O'Gorman alerta: o medo de que a tecnologia cause alguma deficiência em nosso nível biológico vem de vinte cinco séculos atrás. Para embasar esse raciocínio, em 2007 um estudo foi realizado no Trinity College Dublin, descobrindo assim que 25% dos participantes abaixo dos 30 anos não conseguiam lembrar o número de telefone de suas casas sem consultar o celular. Apenas 40% dessas pessoas foram capazes de lembrar a data de aniversário de seus familiares, enquanto 87% dos participantes acima de 50 anos se recordaram. Para o pesquisador responsável, Ian Robertson, os resultados sugerem uma "Atrofia de Memória Induzida pela Tecnologia". 

De forma semelhante, um pesquisador da Coreia do Sul, Yoon Se-chang, aponta que "conforme as pessoas estão mais dependentes de dispositivos digitais para buscar informações do que por lembrá-las sozinhos, a função de pesquisa do cérebro melhora e a habilidade de lembrar diminui". Em um artigo no Korean Times, as observações de Se-chang se unem a outras feitas pelo instituto de pesquisa Embrain: "Diferentemente de antes, as pessoas hoje não precisam fazer muito esforço para lembrar as coisas, já que elas estão a um botão de distância das informações necessárias, as quais estão armazenadas em seus celulares, PDAs ou navegadores. Tudo que têm que fazer é procurar entre elas. O fácil acesso à internet também enfraquece a capacidade de memória. Toda vez que uma pessoa pergunta à outra sobre alguma coisa, você vai facilmente escutar: 'Procure na internet'".

Ainda na Coréia do Sul, o Dr. Byun Gi-Won, do Balance Brain Center em Seoul, afirma que a demência digital não afeta apenas a memória, mas também a atenção e o desenvolvimento emocional. Segundo ele, a disfunção é "caracterizada por déficits de memória, distúrbios de atenção e achatamento emocional entre os jovens que passam muito tempo jogando videogames, fazendo pesquisas online, enviando mensagens e arquivos multimídia pelos smartphones". Para O'Gorman, um modelo como esse, que engloba mais fatores além da memória, parece mais promissor, ainda que ele acredite que a teoria de Gi-Won, em específico, seja controversa por se basear no conceito de lateralização do cérebro - algo já superado em 1981 pelo neurobiólogo Roger Sperry e mais vários outros neurocientistas, como Manfried Spitzer.

Spitzer, aliás, é autor do livro Digitale Demenz (2012), no qual amaldiçoa a mídia digital. De acordo com sua pesquisa, os danos causados por tais suportes são irreversíveis. Assim como já foi proposto pelo escritor Nicholas Carr e a professora universitária Maryanne Wolf, Spitzer defende a plasticidade do cérebro conforme explica que crianças pequenas que usam dispositivos digitais estão mais propensas a sofrer precocemente com a demência do que aquelas que interagem com objetos táteis mais complexos. Em suas palavras, "os ambientes digitais privam a experiência que é necessária durante os primeiros anos, para a formação completa do cérebro".

Apesar das previsões apocalípticas de Spitzer, seu diagnóstico se diferencia dos anteriormente citados por se fundamentar principalmente na neurociência sonora. Mas, ainda assim, O'Gorman critica as conclusões do pesquisador, já que Spitzer afirma que os danos causados ao cérebro são permanentes ao mesmo tempo que considera a plasticidade do cérebro. O professor de inglês explica que "Spitzer parece associar a demência digital a mudanças fisiológicas permanentes, tais como aquelas causadas pelo Alzheimer, por exemplo. Mas se o cérebro é tão plástico quando ele e outros neurocientistas nos levaram a acreditar, então por que não imaginar que a demência digital seja um tipo de demência reversível, assim como a que é causada pela depressão, excesso de álcool e drogas, e deficiências nutricionais. O próprio Spitzer compara o uso da internet ao consumo de álcool, comparando uma competência tecnológica à 'formação de competência alcoólica no jardim de infância ao dar um pouco de schnapps todos os dias às crianças'".

Doença questionável

Mas e se o uso constante de dispositivos digitais for uma evolução em vez de disfunção? O'Gorman diz que, assim como o cérebro humano, as mídias digitais também são plásticas. Conforme mídia e cérebro se desenvolvem em conjunto, o professor acredita que, talvez, os efeitos observados atualmente por Spitzer não pareçam tão consistentes em uma década ou mais. Mesmo porque, como sugere o autor, será que estamos falando de um cérebro digitalmente demente ou um cérebro digitalmente aumentado? Seguindo a lógica dos transumanistas, as mídias digitais são certamente um benefício, uma extensão do homem.

O'Gorman propõe que, eventualmente, as pessoas que fazem crítica a esse hábito contemporâneo podem estar se utilizando de retóricas questionáveis ao descontar as possibilidades que as novas mídias têm de, na realidade, melhorar a atenção, memória e afeto, especialmente se nossos cérebros continuarem se adaptando a elas. Para O'Gorman, os discursos e a ciência usada na defesa por uma demência digital são questionáveis, chegando ao ponto de fazer com que o pesquisador sugira que, de certa forma, talvez essa doença seja proposta mais por conta de uma vontade de nos vermos livres dos dispositivos que constantemente fazemos uso, seja profissionalmente ou não. 

O professor insinua que, principalmente aqueles que não cresceram e evoluíram com as mídias digitais desde o nascimento, são os que têm o diagnóstico da demência digital como "uma grande desculpa para tirar férias da tirania do e-mail, das mensagens, Facebook e assim por diante. A existência de tal doença também dá à geração baby boom, que está realmente enfrentando uma perspectiva de demência por envelhecimento, a evidência de que os nativos digitais que os sucedem são menos inteligentes que os mais velhos. A demência digital, portanto, será vista por muitos como uma pseudociência cheia de inveja grosseira e medo".

No ambiente acadêmico, é notável a preocupação e crítica feita por professores diante de uma geração que está constantemente conectada à internet a partir de seus dispositivos móveis. Alguns usam como base disso estatísticas sobre o tempo de atenção que os alunos dedicam às aulas, como foi ressaltado pela educadora americana Tracey Tokuhama-Espinosa. Tendo participado do 11° Congresso do Ensino Privado Gaúcho, Tracey também concedeu uma entrevista ao jornal Zero Hora, na qual revelou que um aluno é capaz de reter informação durante apenas 10 ou 20 minutos. Ela explica que os estudos foram feitos a partir de questões educacionais, psicológicas e neurocientíficas, tendo como conclusão que o professor deve usar estratégias como a abordagem do aluno ou novas configurações na sala de aula, por exemplo. A educadora salienta que os dois fatores fundamentais para a aprendizagem são a atenção e memória: "Se não tem atenção, não se tem memória. Se não se tem memória, não se tem aprendizado. Se não mantivermos os alunos com um bom nível de atenção, não haverá aprendizagem. A consequência é grave".

Contudo, a desatenção existe desde antes da popularização dos dispositivos móveis e, por esse motivo, seria difícil culpá-los integralmente. Mesmo assim, não deixa de ser possível afirmar que as novas tecnologias provocam ainda mais falta de foco, especialmente por seu formato interativo e múltiplo, dividido em hyperlinks, abas e janelas. Nesse sentido, seria provavelmente mais interessante atualizar o método e o formato de ensino que continuar administrando um formato medieval durante o século XXI. 

O ambiente escolar

Em O Pensamento Sentado, Norval Baitello Jr. comenta justamente sobre o ato de se sentar, de manter-se em repouso sobre uma cadeira ou, mais precisamente, sobre os glúteos. Como lembra o autor, Nietzsche usava o termo Sitzfleisch (nádegas) também no sentido de "persistência, tenacidade, resistência de ficar sentado (quase sempre diante de uma máquina ou de uma tarefa difícil)". Essa resistência, aliás, é algo requerido e adquirido por conta de muitas profissões e atividades humanas. Isso "mostra como somos forçados a permanecer sentados mais do que aguentamos", num estado frequente de impaciência e de literal oposição à natureza que nos torna propensos a não ficar nessa posição por muito tempo.

Baitello argumenta que, enquanto sentados, na verdade estaríamos desejando "dar vazão e liberdade ao inquieto primata saltador ou ao incansável nômade. Resistir significa deixar de ouvir o corpo e sua necessidade de movimento, significa abstrair e subtrair a história natural da espécie em favor de um programa puramente mental". Dessa forma, a união cadeira-homem combina sedentarismo corporal e ativismo visual, um "esforço ocular extremado, ou seja, sentar até não mais poder e olhar até nada mais ver". Isso nos leva ao tema de uma palestra ministrada por Vilém Flusser, em 1990. Em "Reflexões nômades", o pensador tcheco-brasileiro discorre como o homem sobreviveu a três grandes catástrofes: a hominização (descida da copa das árvores, a necessidade do caminhar bípede e ereto), a civilização (vida em aldeia, domesticação e cultivo de animais e plantas) e a "catástrofe sem nome".

As duas primeiras catástrofes, nomeadas, também acompanham verbos compreensíveis às suas noções: o caminhar nômade e bípede está relacionado à atividade de "fahren" (deslocar-se, em alemão), a qual desenvolve o "erfahren" (tomar conhecimento, reunir experiências); já o sedentarismo e o assentamento dizem respeito aos verbos "sitzen" (sentar, estar sentado) e "besitzen" (possuir, acumular bens). No entanto, essa última fase teve um período curto, de pouco mais de 10 mil anos que já se findam, dando lugar à "catástrofe sem nome", uma vez que nossas casas estão sendo invadidas pelo "furacão da mídia", expressão usada pelo comunicólogo alemão Harry Pross. 

A mídia vem como o vento que penetra pelas paredes em forma de imagens, palavras, sons, cenas, narrativas e informações, sites, blogs, redes sociais, serviços de mensagem. Saltamos como primatas, de janela em janela, e nos deslocamos, como nômades, por diferentes endereços eletrônicos direcionados, propositalmente, em um navegador. Para Baitello, essas interfaces "nos convidam a espiar o tempo todo, (...) nos hipnotizam o olhar e nos paralisam o corpo", de modo que, mesmo entre amigos ou família, pelo menos uma pessoa fatalmente será seduzida por uma televisão ligada. "Mesmo que a conversa seja animada, que o assunto e o encontro sejam palpitantes, os olhares furtivos para a tela são inevitáveis e indisfarçáveis", alerta o pesquisador.

Esse impulso estaria, portanto, totalmente conectado ao nosso impulso nômade que retorna apenas como força que move os olhos e ouvidos: é um nomadismo voyeurista, "aquele que só sente prazer em ver, ao longe, o objeto do desejo". Assim, novas concepções de fixidez e referências nascem junto de diferentes percepções e vivências do espaço e do corpo. E, ao mesmo tempo em que se deseja fugir sem sair do lugar, cria-se uma dependência por telas, por displays de imagens. Baitello indica que adolescentes e jovens adultos são os mais afetados por essa "patologia" (sic), sendo que, páginas a frente, ele também argumenta que "nossas escolas se tornaram ao longo dos séculos instituições mestras em domesticar a inquietude natural de nossas crianças".

O pesquisador comenta que anos são gastos para que uma criança aprenda a se sentar e permanecer sentada, "preferencialmente com as mãos também em repouso". Isso passa a ser, mais do que o conteúdo, o principal elemento do processo educacional que, atualmente, "funda-se sobre uma escolarização para a redução e para a simplificação do indivíduo. Em primeiro lugar, devemos aprender a ficar sentados, quase imóveis, já quando crianças bem pequenas, nos jardins de infância e na pré-escola". O movimento, assim, explora os limites impostos e o espaço ao redor, reduzido. Baitello comenta que chegou a ouvir o depoimento de uma jornalista que, quando criança, sentava-se em carteiras escolares com barras situadas sobre o tampo, de modo a imobilizar os braços e as mãos dos alunos inquietos. Como consequência dessa lógica, o autor de O Pensamento Sentado indica que tal sedação e assentamento fazem jus ao termo Sitzfleisch segundo Nietzsche: "constitui o maior pecado contra a natureza do próprio homem".

Talvez seja por esse motivo que escolas vêm analisando o uso de dispositivos móveis na sala de aula, como ocorreu a partir da distribuição de laptops no Uruguai ou no uso de jogos educativos em uma escola particular de São Paulo, estudada por Tiago Mota e Silva em seu artigo Mídia como brinquedo: considerações sobre a apropriação lúdica da tecnologia por estudantes do primeiro ano do ensino fundamental. O jornalista descreve a experiência de uma instituição de ensino brasileira que disponibiliza tablets para alunos do ensino médio e fundamental, de maneira que o aparelho se torna um brinquedo educativo - isto é, a valorização do fator lúdico presente no homem e, assim, também na sala de aula.

Desse modo, o literal uso dos dispositivos móveis, em sala de aula, seja uma possível e literal solução à "falta de foco" diagnosticada pelos educadores. Entretanto, ainda poderíamos questionar se o próprio método da aula expositiva, reorganizado a partir da lógica de saltos hipertextuais, com o uso de dispositivos multimídia, também poderiam ser uma saída aproveitável - isto é, da narrativa linear típica da escrita à adaptação pós-histórica (Flusser) do discurso.

Homem tecno-lógico

Por fim, conforme explica O'Gorman, a proposta da demência digital pode funcionar como uma "contra-narrativa" diante da defesa do aprimoramento do ser humano a partir da tecnologia, como ressaltado pelo transumanismo. O pesquisador cita a Transhumanist Declaration, que "visa à possibilidade de expansão do potencial humano ao superar o envelhecimento, deficiências cognitivas, sofrimento involuntário e nosso confinamento no planeta Terra". Além disso, a declaração também insiste que indivíduos devem ter "uma ampla escolha pessoal sobre como capacitam suas vidas" e, nesse sentido, ressalta O'Gorman, entende-se que a vida humana atual é menos capacitada ao estar atrelada ao corpo biológico. Assim, para o transumanista, próteses tecnológicas nos possibilitariam superar nossas limitações naturais, enquanto um interlocutor mais cético talvez visse em implantes uma forma trágica de alteração da natureza humana.

O'Gorman acredita que ambas as visões falham ao não entender que o humano sempre foi tecnológico. "Ver nossa espécie dessa forma ajuda a amenizar retóricas polêmicas sobre prostética, assim como nos lembra que, em último caso, nós podemos fazer escolhas sobre quais próteses tecnológicas queremos abraçar ou descartar, incluindo próteses de memória". Aliás, seu artigo começa, justamente, com uma citação do conto de ficção científica Johnny Mnemonic, de William Gibson: "E essa era a natureza do meu jogo, porque eu gastei boa parte da minha vida como um receptáculo cego a ser preenchido com o conhecimento de outras pessoas e então esvaziado, jorrando linguagens sintéticas que nunca entendi. Um garoto muito técnico, com certeza".

Ao considerar o conceito de demência digital, entendemos que ferramentas digitais são não-humanas ou quiçá até mesmo desumanas. Gadgets passam a ser vistos como algo fora da natureza ou da parte orgânica da memória humana, assim como a escrita para era algo negativo para Thamus e Sócrates - especialmente se for acreditar que existe uma essência ou algo inato ao homem sem próteses. O'Gorman cita, então, uma passagem de Technics and Time, na qual o filósofo francês Bernard Stiegler sugere que "o humano inventa a si mesmo tecnicamente ao inventar a ferramenta - se tornar exteriormente tecno-lógico". 

O pesquisador conclui que, dessa forma, "não há humano (...) sem próteses (...) nós sempre fomos técnicos" e que invenções humanas como próteses ou a ciborguização são um "método de arquivação: o que é criado fora do homem permanece como uma matéria de registro e cada vez mais se torna o próprio registro ou arquivo, a memória artificial ou exterior em si". Isso pressupõe que "não há humano sem um arquivo, humano sem memória prostética. Qualquer conceito que entende a leitura ou a escrita como algo antinatural para o humano perde a noção de que a única coisa natural no cérebro humano é sua habilidade de se adaptar rapidamente a ambientes e implementações tecnológicas  mutáveis. Com isso em mente, contrariando as sugestões de Maryanne Wolf e outros cientistas cognitivos, não há nada mais natural para o cérebro humano que se adaptar às demandas técnicas da leitura".

Referências

BAITELLO JR, Norval. O pensamento sentado. Sobre glúteos, cadeiras e imagens. Editora Unisinos: São Leopoldo, 2012
BOCK, Maicon. Dilema de Mestre: atenção do aluno dura só 20 minutos. Zero Hora, 18/07/2011 
NAVARRETE, Helena Maria Cecília. Plano Ceibal: Praça e escola como ambientes comunicacionais. 8º Interprogramas de Mestrado, Faculdade Cásper Líbero. 
O'GORMAN, Marcel. Taking care of digital dementia. CTheory, 2015
SILVA, Tiago Mota e. Mídia como brinquedo: considerações sobre a apropriação lúdica da tecnologia por estudantes do primeiro ano do ensino fundamental10º Interprogramas de Mestrado, Faculdade Cásper Líbero. 2014 

quarta-feira, 4 de fevereiro de 2015

Ceticismo e desespero, Emil Cioran

The Triumph of Doubt (1946), Victor Brauner 


Duvidar de tudo e continuar a viver - eis um paradoxo que, todavia, não é dos mais trágicos, já que a dúvida é muito menos intensa e angustiante que o desespero. A mais frequente é a dúvida abstrata, na qual é envolvida só uma parte do ser, ao contrário do desespero onde a participação é orgânica e total. Um certo diletantismo e algo de superficial caracterizam o ceticismo face ao desespero, este fenômeno tão complexo e estranho. Posso duvidar de tudo e opor ao mundo um sorriso de desprezo, mas isso não me impedirá de comer, de dormir tranquilamente ou de me casar. No desespero, do qual não se apanha a profundidade senão vivendo-o, esses atos são possíveis somente a preço de esforços e sofrimentos. Nos cumes do desespero, ninguém possui mais o direito ao sono. Desta maneira, um desesperado autêntico nunca esquece nada da sua tragédia: a sua consciência preserva a dolorsa atualidade da própria miséria subjetiva. A dúvida é uma inquietude ligada aos problemas e às coisas, e provém do caráter insolúvel de todas as grandes questões. Se os problemas essenciais pudessem ser resolvidos, o cético retornaria a um estado normal. Que diferença com a distuação de um desesperado o qual, mesmo resolvendo todos os seus problemas, jamais se tornaria menos inquieto, já que a sua inquietude brota da estrutura do seu ser. No desespero, a ansiedade é imanente à existência. Não são os problemas, então, mas as convulsões e as chamas interiores que torturam. Pode-se lastimar que nada neste mundo esteja resolvido; ninguém, todavia, se suicidou por isso.

Emil Cioran. Sur les cimes du désespoir.

domingo, 1 de fevereiro de 2015

O animal ciente da própria morte

Vigeland Park (Oslo, Noruega)


Conceitos decorrentes da concepção cristã do mundo: a morte. Trecho de transcrição de aula ministrada no curso "A Imagem do Mundo", de Vilém Flusser. Originalmente disponível em FlusserBrasil.
Creio que a famosa frase de Marx "Primeiro comer, depois filosofar" deveria ser reformulada para rezar: "Primeiro aceitar a morte, depois comer, filosofar ou fazer qualquer outra coisa".
Se alguém me for despertar no meio da noite e perguntar, o que distingue o homem do animal, responderia sem refletir: a consciência do homem de sua própria morte. Sem dúvida seria uma resposta irrefletida. Sem dúvida há uma série de distinções mais objetivas entre o animal e o homem. Sem dúvida a consciência de sua própria morte não está sempre presente no consciente despertado. Portanto dizer que o homem é um animal que sabe que vai morrer é uma informação irrefletida. Ela tem, no entanto, uma qualidade que nenhuma reflexão, por matura que seja, consegue produzir: ela tem a qualidade de autenticidade. Irei mais longe e direi que o saber da nossa morte é o único pensamento autêntico do qual somos capazes, todo o resto, todo esse enorme resto de ideias, de vontades, de sentimentos, de imaginações, é pose. É pose em maior e menor grau, é sincero em diluições mais ou menos adulteradas, justamente porque se desenrola diante do pano de fundo inalterável e inexortável da certeza autêntica da morte. A própria certeza da morte torna todo o resto pálido e patológico, uma tentativa desesperada e inautêntica de fugir à morte. E essa situação do homem é que torna tão atraente intelectuamente e sentimentalmente a famosa frase de Heidegger, intraduzível para o português: "Wir sind zum Tode da", que transfiro da seguinte forma: "Vivemos neste momento e sempre para podermos morrer e até a morte".
A psicologia moderna, especialmente a freudiana, insinua, se não o diz abertamente, que tudo aquilo que chamamos de civilização é uma sublimação de um terror reprimido. Em outras palavras, que a civilização é produto de uma doença. Todas as grandes e belas obras do espírito humano, os majestosos edifícios palpáveis da arquitetura tanto quanto os edifícios impalpáveis da ciência, da filosofia, da teologia, e também os edifícios mais transitórios da política e da economia, são outros tantos sintomas da neurose e psicose fundamental: o terror da morte. São sinais da loucura coletiva e individual da humanidade. E esta loucura é resultado da incapacidade do homem de suportar a certeza da morte. Se for a dar crédito aos psicanalistas, diria que o que distingue o homem do animal é o fato do homem saber de sua própria morte e a consequente loucura do homem. Mas se a fuga do homem da morte para a civilização é uma loucura, como dizem os freudianos, ou se é uma mentira, como dizem os existencialistas, então é uma loucura bela e uma mentira grandiosa. Se é assim, não quero sarar, nem quero ter a vivência da autenticidade. Porque sarar da loucura da civilização, desmentir a mentira da cultura, seria volver ao estado são e autêntico da brutalidade animalesca. Sou portanto contrário às tendências modernas de encarar a morte de frente, sou contrário aos ensinamentos filosóficos da moderna psicologia e aos ensinamentos psicológicos da moderna filosofia. Sou reacionário por esperança de que todos esses movimentos atuais, que me parecem bárbaros, são passageiros. Voltará, assim espero, o dia quando a morte reaparecerá em seu aspecto tradicional cristão como porta para a eternidade.

(...)

A situação do homem é absurda. Tudo que ele faz, ou quer, ou sente, ou pensa carece de sentido, porque está condenado de antemão ao nada, à morte. O homem é derrotado em tudo pelo nada e é derrotado não somente na totalidade de sua vida, pela morte, mas também em cada instante individual, pelo nojo. Esse nojo é inevitável, é o produto da certeza da morte e portanto da carência de sentido de qualquer ação, de qualquer pensamento, de qualquer sentimento. É, no entanto, possível aceitar a morte, aceitar o nojo, resolver-se a morrer, resolver-se a viver com o nojo, viver quand-meme, a despeito da morte e do nojo. Nisto reside a autenticidade. A outra possibilidade é recusar-se a morrer, recusar-se a sentir nojo, recusar-se a viver quand-meme. E essa recusa pode tomar a forma de suicídio metafísico, o mergulho na fé, ou a forma do suicídio físico, o mergulho no rio. Nisso reside a decadência, a não-autenticidade. A diferença entre essas duas mentalidades da existência não pode ser discursada, tem que ser vivida.

Confesso que essa ética nojenta e horrorosa é amplamente modificada por diversos pensadores existencialistas, Jaspers por exemplo. Mas essas modificações não me parecem autênticas, se me permitem usar essa palavra depois daquilo que foi dito. Mas o que falta ao existencialismo em força ética compensa pela força estética, pois é no campo do belo e da arte que a autenticidade adquire o seu significado. A interpenetração entre a existência e aquilo que está diante da mão, quando autêntica, não resulta somente em conhecimento, mas resulta, como já disse, na transformação daquilo que esteve diante da mão em instrumento vivido. Em outras palavras, o conhecimento é uma fase de um processo, e a obra de arte é outra fase do mesmo processo, a sabar do processo da vivência dentro da autenticidade. A vida da existência autêntica consiste, por assim dizer, em uma série de vivências criadoras. Tudo aquilo que esteve diante da mão, mas agora se tornou compreendido dentro da existência, isto quer dizer todo o passado de todas as existências autênticas, é testemunha (Zeug und Zeuge) da força criadora da autenticidade.

O conjunto da civilização é testemunha do produto criador da conversação autêntica entre as existências, e como tal, em certo sentido, aniquila a morte. É verdade que as obras não existem no mesmo sentido como existem as existências. Elas estão à mão, não existem sensu stricto, mas na forma de ser que as obras têm elas superam a morte. A estética do existencialismo é, depois de sua epistemologia, o que mais me atrai nessa corrente de pensamento. Creio que há, nessa concepção imediata e vivida do processo da criação artística, o germe para uma nova atitude para com a morte. E será talvez possível, através da estética existencialista, vislumbrar uma nova ontologia, que permitirá enfrentar a morte sem sermos aniquilados por ela.

Para os pensadores da idade moderna, que não repousam sobre a morte, a ética e a estética se relativizam, pulverizam. Não lhes falarei das éticas ocas e sem sangue, sem simpatia e sem pulsação que caracterizam esses professores que nos querem ensinar o bem pelo método matemático com demonstrações com papel e lápis. Perto desses coitados, desses kantianos e benthamitas, desses lockeístas e leibnizistas, com suas concepções do summum bonum e de um Deus necessário e assim por dainte, até a horrível ética dos existencialistas e de seus precursores como Schelling, Schopenhauer e Nietzsche, é tolerável, por ser pelo menos autêntica. Tampouco falarem da estética da idade moderna. Direi somente que com a idade média morreu o último estilo artístico autêntico do ocidente, o estilo gótico, e que o primeiro estilo autêntico ocidental ressurgiu depois da morte do mundo moderno e com o nascer do espírito existencialista, a saber as artes do fim do século dezenove. Não direi o absurdo de que a Europa não produziu obras de arte durante a idade moderna, mas direi que o espírito moderno fez o possível a sufocar a força criadora, que continuou não graças, mas a despeito desse espírito de pergaminho. Os diversos renascimentos e classicismos são prova da mania seca e murcha do espírito ocidental durante a idade moderna, e as grandes obras realizadas durante essa época são prova do vigor criador da Europa a despeito dessa mania.