sábado, 15 de setembro de 2012

Os ideomitos - Edgar Morin



No livro "O Método 4, as Idéias - Habitat, vida, costumes, organização", Edgar Morin, entre outras coisas, contextualiza o termo "noosfera" e apresenta um posicionamento sobre como os mitos continuam presentes na atualidade, ainda que tentemos destruí-los com discursos que hasteiam a bandeira do racionalismo, do cientificismo e positivismo. Um exemplo vulgar e de rápida assimilação seriam os movimentos pró-ateísmo que muitos podem ter acompanhado nas redes sociais, recentemente. Menciono especificamente aqueles que põem o discurso mitológico e religioso em detrimento ao científico, anulando-o em favor de uma idéia de razão e verdade a qual Morin, no trecho abaixo, compara a uma deidade.

Mas, acima de tudo, para fazer paralelo com as temáticas do blog e com a minha pesquisa, acredito que esse texto ponha em voga o elemento mitológico/subjetivo/irracional que se encontra nas ideologias ou particularmente no fenômeno do nazismo. Já tratei disso no blog com uma tradução do texto de Jung sobre Wotan e o nazismo, bem como ao publicar o trabalho de um estudante de psicologia sobre o fracasso da razão durante tal período histórico, ou mesmo ao comentar o livro Vampyroteuthis infernalis, de Vilém Flusser e traduzir uma resenha de A Terrible Love of War, de James Hillman. Deixo então, para leitura e desfrute, esse subtítulo "Os ideomitos" de Edgar Morin:

Os ideomitos



Acreditou-se no século XIX e no começo do século XX que a promoção das ideias laicas correspondia à evolução necessária e progressiva do mito à razão, da religião à ciência; o desaparecimento gradual dos mitos bioantropomorfos e o estreitamento da área religiosa deviam completar-se, o que corresponderia ao triunfo das verdades positivas, racionais e científicas.

Ora essa concepção, que Auguste Comte formulou como lei evolutiva, era um mito e, de resto, Comte teve a loucura genial de coroar a era positiva com uma nova religião, concreta e universal, na qual a adorada Clotilde de Vaux encarnava a Humanidade-Mátria.

De maneira mais convincente, Max Weber concebera o desaparecimento gradual dos mitos, religiões, ritos, tradições, como um processo de secularização em proveito das ideologias, da ética e das crenças subjetivas. É interessante salientar que dois ramos divergentes saíram dessa perspectiva;  por um lado, o da interiorização, da subjetivização, da estetização. Efetivamente, podemos constatar que os gênios, demônios, espectros, que povoavam a natureza, foram despachados para uma noosfera estética, tornando-se heróis de romances ou stars de cinema, ou migraram para os interiores psíquicos, tomando a forma fluida das pulsões e sentimentos. Podemos pensar que esses desenvolvimentos estéticos e subjetivos estão dialogicamente ligados aos desenvolvimentos antinômicos e concomitantes do pensamento racional-empírico-lógico e dos sistemas abstratos de ideias, teorias científicas, doutrinas, ideologias.

Pudemos nos questionar sobre as ressurreições dos mitos no campo estético das novas artes (romance popular, cinema, televisão, esporte) de massa (Morin, 1957, 1962). Pudemos igualmente nos surpreender com a resistência das grandes religiões e mesmo com as suas contra-ofensivas vitoriosas nas terras desoladas do desencantamento e do niilismo. Mas é necessário, sobretudo, ver o que Max Weber não viu: a reinvasão do mito e mesmo da religião nos sistemas de ideias aparentemente racionais.
Georges Bataille (1972, PP. 393-394), por seu lado, bem observou a existência no mundo moderno de uma “avidez de mitos”. Acrescentemos: novos mitos fizeram ninho no próprio coração das ideias abstratas. Em outros termos: as estruturas arcaicas do mito apropriaram-se das estruturas evoluídas da ideia.

O Wittgenstein dos manuscritos de 1931 descobrira, durante uma longa meditação sobre O Ramo de ouro, de Frazer, não somente “que a eliminação da magia tem... o caráter da magia”, mas também que a metafísica podia ser considerada “como uma espécie de magia”. Freud perguntava-se, mais ou menos na época (1933), se a própria teroia científica não era mitológica.

Essa questão merece ser colocada. É certo que as teorias científicas, nos seus aspectos abertos e profanos, situam-se nas antípodas do mito. Mas o seu núcleo comporta uma zona cega onde pode instalar-se um fermento que transforma a ideia, tornada soberana, em mito; assim, a ideia pitagórica da realeza do Número torna-se mito, como ocorre com a ideia galileana, newtoniana, laplaciana, da ordem matemática do mundo...
Toda passagem a ser de um sistema de ideias comporta um potencial mitologizante. Toda idealização/racionalização doutrinária tende a autotranscendentalizar o sistema. A partir daí, o mito pode instalar-se no núcleo do sistema abstrato e divinizar as ideias mestras. Assim, opera-se a mitologização da ideia abstrata. As teorias científicas evitam a doutrinização, mas o seu núcleo permite a mitificação. Os themata são ideias mestras obsessivas que tendem a impregnar-se de força mítica. Assim, embora permanecendo empírico-racionais, as teorias científicas podem absorver mito nos seus núcleos.

O mito introduz-se clandestinamente, como um vírus que se introduzisse no DNA do hóspede e nele se integrasse, suscitando desde então uma atividade propriamente mitológica mais invisível. Melhor ainda: o mito invadiu o que lhe parecia mais hostil e que deveria tê-lo liquidado.

Se o mito pode introduzir-se no núcleo das teorias científicas sem, no entanto, controlá-lo totalmente, pode invadir plenamente as doutrinas e as ideologias. Enquanto as teorias científicas permanecem profanas por natureza, a despeito da tendência própria a todo sistema de ideias a autotranscendentalizar, as doutrinas auto-sacralizam-se e auto-idolatram-se. O conceito fundamental torna-se soberano do universo. A doutrina exige a veneração dos seus adeptos, que devem obedecer-lhe literalmente, citá-la ritualmente e  utilizar a conserva fiada litânica de um quase culto. Assim, a transcendentalização e a deificação características da mitologia e da religião entram sub-repticiamente, mas com profundidade, no mundo laico da doutrina.

Acontece o mesmo com a ideologia. Como todo sistema de ideias, a ideologia comporta um núcleo que determina a organização dos conceitos e a natureza de sua visão de mundo. Esse núcleo não se limita a realizar a fusão (ou a confusão) entre paradigmas/axiomas e valores, mas contém, enterrado em si, uma substância mítica confundida com a sua própria substância doutrinal. Os valores adquirem uma vida superior que os torna míticos: a Justiça, a Ordem, a Liberdade, a Igualdade, o Amor, a Verdade, o Homem, embora permanecendo valores, tornam-se mitos e divinizam-se. Assim, o homem, fonte de direito e de fraternidade na filosofia humanista, acha-se, de qualquer maneira, divinizado na ideologia humanista,  pela qual alcança uma dignidade sobrenatural que o destina à conquista e ao controle da Natureza. A ideia do homem e o mito do homem contaminam-se reciprocamente, e o mito tendem a apossar-se da ideia. Diferentemente do mito tradicional, o mito moderno é invisível sob a abstração ideal e sob a lógica do sistema. Torna-se tanto mais invisível quanto mais usa a máscara da ciência “desmitificadora”. Assim, o mito da salvação terrestre tomou a forma do “materialismo científico”.

Hoje, no nosso mundo ocidental, só de maneira estética, sob a forma romanesca ou cinematográfica, consumimos os mitos do tipo arcaico, antigo ou exótico, as narrativas bioantropomorfas. Os nossos mitos, profundos e tirânicos, encontram-se embutidos em cápsulas de ideias abstratas, inclusive na ideia desmitificadora da Razão. Virulentos, fazem parte das nossas ideologias. Há mito tipicamente moderno quando há, nas ideias fundamentais de uma ideologia, coagulação de fortes cargas de verdade cognitiva e de verdade ética (valores) e quando essas ideias se tornam autoritárias, dominadoras, sacralizadas, soberanas. Assim, a ideologia contém, subterraneamente, no seu coração as estruturas do pensamento p.181
Simbólico-mágico-mítico, escondidas sob as do pensamento lógico-empírico-racional.

A virulência de uma ideologia pode tornar-se extrema. A ideologia, vale lembrar, sempre teve uma força motora derivada da sua forte carga mitológica e do seu caráter político, isto é, de práxis, na cidade. As ideologias apossam-se e subjugam então os humanos, como faziam os deuses. É certo que os homens obtêm, em troca, satisfações psíquicas; possuem a verdade que os possui, controlam o universo através de uma ideologia, gozam, como em verdadeiros coitos psicológicos, com a repetição dos seus themata obsessivos, os quais fornecem à doutrina o seu erotismo enfeitiçador. Logo, os humanos chegam a viver e a morrer pela ideia.

Aparentemente, os Tempos modernos caracterizam-se pela dominação dos sistemas abstratos de ideias ou ideologias e pelo retrocesso dos sistemas mitológicos e religiosos. Mas a grande e real laicização da noosfera não deve mascarar a invasão dos mitos no seu próprio interior. Assim, vimos a razão, bifurcando da racionalidade para a racionalização, tornar-se ídolo e mesmo deusa. A razão só existe como atividade crítica e autocrítica, mas tornou-se uma entidade em si, arrogando-se a soberania, a providencialidade e, no limite, a divindade. Do mesmo modo, a ideologia científica constituiu-se como sistema ao mesmo tempo racionalizador e idealista, suscitando a aglutinação em si dos mitos da Certeza, da Razão, do Progresso; assim, a ciência viu-se atribuir a missão providencial de guiar a humanidade para a salvação terrestre.
É nessas condições que a palavra Razão se torna insensata e a palavra ciência, anticientífica. Adorno e Horkheimer viram bem que a Razão (fechada) torna-se ela própria autoritária: ao estender a sua universalidade potenciral ao universo, apropria-se do universo, identifica a sua ordem à ordem cósmica ou histórica e apossas-se das leis da Natureza. A Razão, com maiúscula, abstrata e racionalizadora, instaura uma guilhotina ideológica e uma potencialidade totalitária.

Já portadoras de paixões e de violências, a mitificação e a deificação que penetram na ideologia abstrata serão penetradas pela fria crueldade da lógica, pelo delírio gelado da racionalização. Assim, o nazismo e o stalinismo associaram o frio absoluto da sua lógica e o fogo devorador da sua salvação para realizarem as maiores exterminações da história.

O fenômeno chave deste século é o desfraldar mito-religioso de grandes ideologias políticas com, primeiro, o triunfo e, depois, no fim do século, a erosão (provisória? Definitiva?) dos mitos da salvação terrestre.

MORIN, Edgar. O Método 4. As idéias. Habitat, vida, costumes, organização. Porto Alegre: Editora Sulina, 1998