terça-feira, 1 de setembro de 2015

Kafka, Deus e o Absurdo


Naftali Rakuzin
Com esta pergunta, que devo deixar em aberto, aventuro-me a uma aproximação da mensagem propriamente dita da obra de Kafka.
Essa mensagem, tal qual aparece pelo prisma das duas dificuldades mencionadas. Distorcida e duvidosa portanto, diz respeito à situação do homem em face das forças que o governam, à situação dessas forças em face do homem, e diz respeito ainda a essas forças em si. Se tentarmos reduzir essa mensagem a umas poucas frases, coisa com a qual Kafka evidentemente nunca concordaria, chegaríamos aproximadamente ao resultado seguinte: o homem vive em estado de culpa permanente em face das forças superiores. Sabe da sua culpa e da justiça de qualquer castigo que essas forças proventura lhe imporão, mas não sabe da natureza dessa culpa. Procura o contato com essas forças, não para pedir perdão, mas para esclarecer a sua culpa, para "saber". Ewssa procura tem excelentes possibilidades de êxito, já que as forças superiores são, aparentemente, muito próximas.
Entretanto, por motivos fúteis e absurdos, o êxito da procura é frustrado continuamente. Intimamente o homem sabe sempre da futilidade dos seus esforços para encontrar as forças superiores, e o sabe a despeito de todas evidência em contrário. Persiste, entretanto, na procura, porque prefere dar ouvidos à evidência, e não à sua convicção íntima. As forças, tão próximas e tão inalcançáveis, mantêm em face do homem uma atitude de indiferença e desprezo. Consideram o homem culpado (nisto estão de acordo com ele), mas não lhes vale a pena castigá-lo.
Ele próprio provoca o castigo com sua insistência de conhecer a sua culpa. A suspensão provisória do castigo divino (e por que não usar essa palavra?) não é consequência da Sua misericórdia, mas de Sua superorganização. A força divina funciona devagar e mal, porque é complicada demais e administrada numa rotina que lhe é totalmente inapropriada. Dada a completa indiferença da força divina em face do homem, este mau funcionamento não tem a mínima importância. Entretanto, neste mau funcionamento reside a única esperança do homem para escapar ao castigo justo que o espera. Sabendo, muito embora, disto, o homem, absurdamente, se esforça em apressar o funcionamento do aparelho divino. Nesse esforço frustrado reside a finalidade da vida humana. Assim devemos compreender o ensinamento do mestre Kafka: "Passei a minha vida a combater o desejo de acabar com ela".
A teologia que esta mensagem descortina diante da nossa visão estarrecida tem vários pontos de contato com as teologias das nossas religiões tradicionais, mas se distingue delas quanto ao seu clima. O clima da vida humana é o da angústia não mitigada por qualquer esperança, e o clima das hostes divinas é o nojo. A angústia humana não é, propriamente, um conceito novo, embora raras vezes tenha sido tão veementemente pregada como em Kafka. O que me parece ser revolucionário e epocal (no sentido exato dessa palavra) é o conceito do nojo divino. Em face do nojo divino a nossa angústia assume, realmente, proporções gigantescas, incomparavelmente maiores do que as da angústia em face da ira ou do ciúme divino. É preciso sorver esse nojo até o fundo, se quisermos compenetrar-nos da teologia de Kafka.
Não é o nojo que Deus sente da sua criação, este já era conhecido dos antigos profetas ("somos vermes diante de Ti"). É o nojo que Deus sente por Si mesmo. A tal ponto parece se blasfêmea essa teologia, que começamos a compreender e simpatizar com os esforços de Kafka de mascará-la em códigos.
Os pontos de contato com as teologias tradicionais são muitos e evidentes. É por esta razão que podemos considerar Kafka um profeta judeu, embora heterodoxo. Temos aqui, para citar somente um exemplo, o conceito do pecado original. Todos são culpados. Entretanto (e isto é característico), o pecado original é o estado primitivo, "natural" do homem, não é consequência de qualquer ato humano. Com efeito, ainda não comemos do fruto da árvore da sabedoria, e são justamente os nossos esforços de cometer esse crime que são continuamente e absurdamente frustrados.
A bem dizer (e nisto reside, creio, a suprema ironia), vivemos ainda no Paraíso, num Paraíso kafkiano, bem entendido. Numa teologia assim não há, evidentemente, lugar para a salvação e o Salvador, já que a queda ainda não aconteceu. O próprio conceito "salvação" carece de significado dentro do concetxto da obra de Kafka.
Uma enumeração dos pontos de contato entre a mensagem da obra de Kafka e a teologia tradicional, por fascinante que possa ser, seria, no entanto, um exercício fútil. A força de convicção que essa mensagem carrega consigo vence (com todas as reservas que continuamos nutrindo, e que ele próprio, certamente, continuava nutrindo) porque a visão que ele descortina concorda com a nossa vivência mais íntima. Trata-se de uma vivência tão penosa que a relegamos ao esquecimento, mas ela continua dormente em nosso espírito. Kafka veio para despertá-la. Consideremos o seu impacto:
Kafka ensina que a vida humana é uma procura frustrada do saber. Mas não se trata de uma procura orgulhosa, ou de um saber que proporciona poder. Nada tem a ver com a Hybris dos gregos. A vida humana nada tem de heróica. O homem não é rebelde. A procura à qual se dedica é um tatear dócil e humilde, e o saber que procura é o da sua própria perdição e futilidade. Esta ordem de ideias não concorda com a imagem do homem que geralmente estamos acostumados a projetar, mas concorda com a vivência íntima que temos de nós mesmos nos momentos de recolhimento.
Kafka ensina que as forças que nos governam são indiferentes e desinteressadas na nossa sorte. Mas não se trata da indiferença e do desinteresse das forças cegas da natureza, as quais substituem a divindade na mente dos ateus ingênuos do século passado. Trata-se de uma indiferença cheia de desprezo, e as forças que a nutrem para conosco a demonstram brincando conosco absurdamente e sem regra, para não dizer idioticamente. Esta ordem de ideias não concorda nem com o conceito teológico tradicional da providência divina, nem com o conceito cientista das leis da natureza, mas concorda com a nossa vivência íntima da estupidez e da absuridade das nossas desgraças. Kafka ensina que as forças superiores são máquina pedante, corrupta, mal conservada e nojenta. Esta ideia da Divindade é igualmente repulsiva e grotesca aos olhos de um crente como aos olhos de um ateu. Concorda, entretanto, com a vivência íntima que temos das forças que nos regem.
Senão, por que rezamos, a não se para corromper uma instância inferior da hierarquia Divina? Por que fazemos promessas a nós mesmos, senão para enganar um suboficial celeste, encarregado vagamente do nosso caso, mas que o acha aborrecido e tedioso demais para interessar-se realmente? Por que praticamos boas obras, senão para que obtenhamos um lançamento a crédito na nossa conta-corrente celeste, temendo, ao mesmo tempo, que algum contador incompetente faça um lançamento errado? Não é somente a nossa mente individual que opera intimamente com o conceito kafkiano da Divindade, mas as próprias religiões tradicionais o nutrem. Que outro significado podem ter, por exemplo, rezas do tipo "Ora pro nobis", a não ser "Não te esqueças de rezar por nós, já que és perfeitamente capaz de esquecer"?
Enfim, a força da convicção que a mensagem de Kafka tem, não provém  nem da razão, nem da fé, mas da vivência imediata.

Vilém Flusser. Da Religiosidade. A literatura e o senso de realidade. Escrituras, 2002

sexta-feira, 12 de junho de 2015

Fé, ciência, tecnologia e filosofia

Agora (2009)

Quando abro o rádio, jorram anúncios; quando abro a torneira, jorra água. Se amanhã a torneira jorrasse anúncios, a minha reação seria surpresa. Vivo em expectativa constante: espero constantemente que torneiras jorrem água, pura água, toda a água, e nada mais que água. Essa minha expectativa não é confirmada pela experiência que meus sentidos fornecem. Torneiras jorram água suja, ou pouca água, ou nada. Mas a evidência dos meus sentidos não destrói a minha fé nas torneiras. "Explicam" o comportamento das torneiras por fatores externos, como a hipótese da falta de chuva, ou a hipótese do encanador, ou a hipótese da Municipalidade. Essas hipóteses "provam" que, eliminados os fatores externos, torneiras jorram água. A evidência dos meus sentidos, embora prima facie contrária à minha fé nas torneiras, fortalece, em virtude das hipóteses, a minha expectativa de água. Pois é este exatamente o caráter da fé: é uma esperança que transforma evidência contrária em prova. 
Mas o caso da torneira jorradora de anúncios seria diferente. Seria, não o inesperado, mas o inesperável. Causaria surpresa. Poderei superar essa surpresa com hipóteses ousadas. Pela hipótese da alucinação, ou pela hipótese do rádio portátil escondido na torneira, por exemplo. Mas, por um instante pelo menos, a minha fé ficará abalada. 
Casos como o da torneira jorradora de anúncios ocorrem. Antigamente eram chamados limagres. Hipóteses ousadas reintegravam os milagres no tecido da fé, a qual continuava fortalecida por eles. "Das Wunder ist des Glaubens shoenstes Kind" (o milagre é o filho mais belo da fé) diz Goethe. Tão forte era a fé, que os antigos esperavam pelo inesperável, pelo milagre. Atualmene, embora continuem ocorrendo casos surpreendentes, não ocorrem milagres. Evoluímos um mecanismo que sufoca automaticamente surpresas. É o mecanismo do "faça-de-conta". Quando algo inesperável ocorre, fazemos de conta que era esperado. É graças a este mecanismo que nada nos surpreende. Tudo é corriqueiro. Torneiras jorradoras de anúncios: nada mais corriqueiro, nada mais banal que isto. 
Que ocorram. O choque de surpresa que causarão não passará de vestígio de uma ingenuidade superada. A tese do presente artigo será que este nosso mecanismo é sintoma de fé profunda. Que somos uma época que espera por milagres. E que nossa fé na torneira é parte da nossa fé fundamental na tecnologia. De uma esperança portanto que é fortalecida por evidências contrárias, e que cresce com torneiras jorradoras de anúncios, com milagres portanto. 
Se digo: "Amanhã nascerá, em vez de sol, um queijo de Minas para iluminar a Terra", terei dito uma absuridade. Mas se digo: "Ontem nasceu um queijo de Minas e iluminou a Terra", e se milhares confirmarem esta minha observação, terei articulado uma banalidade. É óbvio que o queijo de Minas nasceu. As teorias astronômicas esperavam pelo nascer do Sol, mas essas teorias são apenas sistemas hipotéticos incompletos. Comportam uma reformulação progressiva. Se reformuladas à luz dos acontecimentos de ontem, provam essas teorias que o nascer do queijo de Minas era um acontencimento necessário, ou, pelo menos, altamente provável. O queijo de Minas, longe de abalar a astronomia, prova, pelo contrário, a eficiência do método científico como captação da "realidade". Todo fenômeno novo se enquadra nesse método por simples modificação da teoria. Esta é, a meu ver, a forma como funciona a fé  na atualidade. 
É a fé na coincidência do pensamento de um determinado tipo com o mundo que nos cerca. O primeiro artigo dessa fé reza: "O pensamento lógico coincide com a realidade". O segundo artigo reza: "A expressão mais perfeita do pensamento lógico são enunciados da matemática pura". O credo conclui: "A realidade tem a estrutura da matemática pura". Isto não é, como parece, racionalismo puro.A tecnologia prova, empiricamente, qu enossa fé é a fé verdadeira. Nossas máquinas e nossos instrumentos são fé aplicada, são "obras" no significado teológico do termo. E nossas máquinas e instrumentos funcionam. "Provam" nossa fé empiricamente. Funcionam como funciona, por exemplo, a torneira. Jorram água, e isto prova, também, que nossa fé é verdadeira. Ou jorram anúncios, e isto prova, de maneira concludente, que nossa fé é verdadeira. Nossa fé tem um aspecto racional, e um aspecto empírico: é uma fé completa. 
A coincidência entre pensamento lógico e "realidade" é incrível. Não pode ser acreditada. Nossa vivência do mundo a desmente a todo passo. No entanto, nossa fé aceita essa coincidência como fato indubitável. É uma fé autêntica, porque crê quia absurdum. Mas ao dizer que a coincidência é incrível, coloquei o presente argumento em terreno estranho à fé da atualidade. A "nossa" fé não é a fé do presente argumento. Como consegui essa ironia? Evidentemente porque nossa fé permite, em seu estágio atual, que seja abandonada. Abriu fendas. Por uma dessas fendas escapou-lhe o presente argumento. Uma fé que abre fendas é uma moradia incômoda e perigosa. É incômoda, porque ventos gélidos invadem os seus aposentos e fazem tremer os que nela se abrigam. E é perigosa, porque ameaça ruir e soterrar os habitantes em sua ruína. Duas são as possibilidades que uma situação destas oferece: método pelo qual o pensamento se agarra às coisas para modificá-las. 
O próprio êxito desses dois métodos (que é o triunfo do Ocidente) e também, a meu ver, o começo do fim da Idade Moderna, e, talvez, por isto mesmo, o começo do fim do Ocidente. Porque o conhecimento do mundo dos corpos que a ciência proporciona ao pensamento revela progressivamente a dubiedade desse mesmo mundo, e a modificação nele operada pela tecnologia é portanto fútil. 
Em outras palavras: as conquistas epistemológicas e éticas do pensamento ocidental em seu avanço contra o mundo dos corpos revelam progressivamente que falta, a esses métodos, o concursus Dei. Há algo fundamentalmente errado na visão cartesiana da qual brotaram. Se a física moderna revela progressivamente e de muitas maneiras que o fundamento da matéria é o pensamento, já que os elementos da metéria se revelam como sendo mais símboos do pensamento que outra coisa (nêutrons, mésons etc), e já que em certos processos fundamentais não é possível fazer-se a distinção entre observador e observado, isto é, entre sujeito e objeto, há algo errado na física como método do conhecimento.E se a tecnologia modificou o mundo dosc orpos a ponto de tornar perfeitamente imaginável um estágio de fartura e de lazer, sem que com isto diminua a angústia e o tédio humano, há algo errado na tecnologia como busca de felicidade. Esse erro fundamental devemos buscá-lo, ao meu ver, no conceito do pensamento tal como foi projetado pela visão cartesiana, e realizado pelo Ocidente no curso da Idade Moderna.
A dicotomia que Descartes estabelece entre matéria e pensamento, entre corpo e alma, entre o duvidoso e o indubitável, é, ao meu ver, uma dicotomia nefasta. Mas confesso ser ela de superação muito difícil. Porqu eessa dicotomia, longe de ter surgido no sistema cartesiano, já está contida nos mitos primordiais que deram origem à civilização ocidental e que encontrram a sua experssão ritualizada no cristianismo. 
Descartes não passa, deste ponto de vista, de uma explicação do cristianismo. Já o cristianismo distingue, para falarmos com Vicente Ferreira da Silva, entre o salvável (que é a alma) e o sacrificável (que é o corpo). A dicotomia pensamento-matéria não é portanto fruto de uma distinção epistemológica, como parece ser se formos considerar a partir de Descartes, mas é fruto de todo um conjunto ético-religioso do qual participamos. Já que fomos projetados por esse conjunto, já que existimos nele e graças a ele, é tremendamente difícil imaginarmos outro projeto existencial, no qual a nefasta divisão matéria-espírito não seria o caso. Embora saibamos de outras civilizações, como a indiana (que desconhece a divisão a ponto de conceber espíritos materializados), e de culturas chamadas "primitivas" (que vivem em mundos pré-lógicos, isto é, anteriores a essa divisão), é-nos impossível sorvermos existencialmente esses projetos alheios ao nosso. 
Mas é necessário pelo menos tentarmos esse salto para fora do nosso projeto, se é que tenho alguma razão ao afirmar que a divisão matéria-pensamento ameaça a nossa civilização com o mergulho no abismo do tédio e da futilidade, justamente pelo êxito da ciência e da tecnologia. E creio ser possível esse salto, até certo ponto. Não pelo ultrapassar do nosso projeto, mas graças ao poder reflexivo do qual dispomos e o qual nos poderá conduzir até perto das nossas origens, daquelas origens nas quais se deu, in illo tempore, a divisão entre pensamento e matéria, entre alma e corpo. A reflexão, portanto, para a qual convido os senhores, deve conduzir-nos até aquele ponto (para recorrer a um mito) no qual se deu a expulsão do paraíso, isto é, a alienação que é o nosso pensamento. 
Que poder é esse, que acabo de mencionar e que chamei de reflexivo? Para iluminá-lo, voltemos por um instante a considerar o processo do pensamento tal como o descrevi há pouco. Disse que o pensamento se precipita sobre os corpos para compreendê-los, e que se agarra a eles para modificá-los. O pensamento é portanto um processo explosivo que se expande para dentro do mundo dos corpos para devorá-los. O método desse devorar é a ciência e a tecnologia. Mas existe outro movimento do pensamento, um movimento oposto. Nesse movimento contrário o pensamento se vira contra si mesmo para compreender e devorar-se a si mesmo. A palavra "reflexão" indica a direção desse movimento, já que denota um recuo em direção oposto ao avanço. A palavra correspondente alemã "Nachdenken" (pensar atrás ou depois) indica a função desse movimento, já que denota controle. 
E a palavra correspondente tcheca "rozmyslení" (pensar analítico) indica o resultado desse movimento, já que denota a decomposição do pensamento. A reflexão é portanto o movimento inverso do pensamento, que o controla e o decompõe em seus elementos. O método esse compreender-se e modificar-se do pensamento é a filosofia. A filosofia é portanto exatamente o contrário da ciência e da tecnologia. As tentativas empreendidas de diversos lados, por exemplo pelos marxistas, por Dilthey e por Husserl, de tornar científica a filosofia, denotam, ao meu ver, uma incompreensão total do processo do pensamento. Se afirmei que, em nossa tentativa de evitar a queda da nossa civilização no abismo do tédio e da futilidade, devemos recorrer à reflexão, tinha eu em mente exatamente essa oposição entre filosofia de um lado, e ciência e tecnologia do outro. Não é com mais ciência e mais tecnologia que sairemos da situação angustiada na qual nos encontramos mas com mais filosofia (se é que sairemos). É verdade que na descrição que acabo de lhes oferecer a ciência e a tecnologia aparecem como tendências progressivas do pensamento, e a filosofia como a sua tendência regressiva. E é verdade que a grande maioria continua valorizando positivamente o progresso como herança dos dois séculos passados e a despeito de muitos sintomas inquietantes. Mas existem situações, reconhecidas mesmo por aqueles que põem sua fé no progresso, nas quais uma expansão excessiva exige um recuo para consolidação e descanso. Creio que devemos caracterizar assim a nossa situação, mesmo se formos otimistas. A minha proposta de substituirmos a ciência e a tecnologia pela filosofia pode ser portanto encarada como um réculer pour mieux sauter mesmo por aqueles que não crêem, como eu, estar o nosso progresso dirigido rumo ao abismo. 
Disse que a reflexão metódica, a filosofia portanto, deve conduzir-nos até perto das nossas origens, em profundidades portanto que caracterizei pelo mito da expulsão do paraíso. Esse mito nos conta, conforme creio, em sua linguagem densa e poética, que caracteriza todo mito, o mistério do surgir do pensamento. Conta-nos esse mito que fomos expulsos e lançados para cá porque comemos do fruto proibido da distinção entre o bem e o mal, do fruto da divisão e da dúvida portanto. Modernizando um pouco, poderei chamar esse fruto de "antimescalina". A expulsão do paraíso, o qual pode ser descrito como o estado da não-divisão e da não-dúvida, a expulsão para cá, que pode ser descrito como o estado da divisão e da dúvida, não é um acontecimento do passado histórico remoto, mas é um acontecimento mítico, isto é, um acontecimento que a todos nós aconteceu e sempre acontece de novo. Estamos sendo expulsos do paraíso toda vez que distinguimos, toda vez que duvidamos. Aliás, duvidar é sinônimo de distinguir e de estar expulso, já que etimologicamente parente de dividir e de dois. Em alemão isto se torna ainda mais claro, já que "zweifeln" (duvidar) conduz ao "verzweifeln" (perduvidar), isto é, ao desespero. A nossa expulsão desesperada do paraíso é portanto a própria dúvida, que é por sua vez um distinguir, um dividir, um ordenar portanto. 
Fomos expulsos do paraíso em direção da ordem e do progresso. Deixamos para trás, sem esperança, o caos da indistinção e da ingenuidade, e estamos sendo lançados, impiedosamente, em direção do cosmos da clareza distinta, que é, como diz o mito, a morte. Esta me parece ser a mensagem do mito, que foi reformulada, em sua versão mais moderna, por Heidegger na frase: "fomos lançados para cá e estamos aqui para a morte". Mas esse duvidar, que é um distinguir e ordenar, e que o mito chama de expulsão, esse duvidar é o próprio pensamento. Com efeito, duvidar e pensar são sinônimos, e Descartes é, todo ele, resultado desse sinonimato.A coisa pensante cartesiana é indubitável, justamente porque ela é a coisa que duvida. De acordo com Descartes a dúvida não pode duvidar de si mesma. A dúvida, portanto o pensamento, distingue e ordena o duvidoso, submete o duvidoso a uma ordem, a fim de que o duvidoso deixe de sê-lo e se torne indubitável. O pensamento é portanto um processo absurdo. Duvida para deixar de duvidar, e transforma, nessa tentativa, o duvidoso em dúvida. O processo é absurdo em dois aspectos: é absurdo porque a meta do pensamento é acabar consigo mesmo, e é absurdo porque o pensamento pretende alcançar essa meta pela transformação de tudo em dúvida. O pensamento em sua absurdidade é comparável à sede que pretende matar-se bebendo o mar: porque é absurdo querer beber o mar, e porque com cada gota bebida a sede aumenta. Quanto mais progride o pensamento, tanto mais evidente se torna a sua absuridade dupla, tanto mais evidente se torna ser o pensamento a expulsão do paraíso.

Vilém Flusser. Da religiosidade. A literatura e o senso de realidade. São Paulo, Editora Escrituras, 2002