sábado, 21 de dezembro de 2013

Vilém Flusser: ?

Devo confessar que entre todos os signos existenciais é o "?" aquele que mais significativamente articula, a meu ver, a situação na qual estamos. Creio que pode ser elevado a símbolo da nossa época com justificação maior que qualquer outro. Maior inclusive que a cruz, a foice e o martelo, e a tocha da estátua da liberdade. Mas elevado assim a símbolo deixa de ser, obviamente, o "?" um signo que ocorre em sentenças com sentido. Sofre o destino de todos os símbolos extrassentenciais: é equívoco e nebuloso. Contentemo-nos pois com o "?" como signo que ocorre em sentenças, mas saibamos manter fidelidade ao seu significado. Não será este o papel mais nobre da nossa poesia? Formular sentenças com sentido novo que tenham um significado que lhe é conferido pelo "?" pelo qual acabam? Formulando este tipo de sentenças, rasgará a poesia novas aberturas para um discurso que ameaça acabar em ponto final.

Vilém Flusser. ?.
Publicado originalmente em 22 de outubro de 1966 n'O Estado de São Paulo. Trecho retirado do livro A Dúvida, p.8, 2011, Editora Annablume

domingo, 15 de dezembro de 2013

Udo Kultermann sobre arte política

Udo Kultermann é autor do livro New Realism, publicado em 1972, pela New York Graphic Society. Nesta obra, o historiador da arte escreve sobre hiperrealismo e especificamente no capítulo sobre os aspectos políticos desse gênero, ele abre parênteses para falar sobre o papel da obra de arte dentro da pólis, comparando o artista ao cientista, a forma como este age em relação à atuação científica e técnica, que ele também vislumbra na política.

O curioso desse capítulo é que, no entanto, ele acaba não falando exatamente sobre o hiperrealismo, mas sobre a obra de arte com aspecto político - o que não é o caso do hiperrealismo à época em que ele escrevia. Ele até menciona alguns trabalhos como Riot, de Duane Hanson, e War Protest March, de Audrey Flack, mas assim como seus contemporâneos, estas imagens são apenas registros e não uma "propaganda política". Como o próprio Kultermann analisa, essas pinturas são: "uma tentativa de objetificar a documentação de como o evento em questão realmente aconteceu. O significado político em questão é expressado muito mais pela alta seriedade ao tentar apresentar uma visão altamente disciplinada da realidade" (p.22).

O fotorrealismo, ou hiperrealismo, foi extremamente criticado já à sua época por conta da sua falta de crítica e profundidade, por apenas registrar aquilo que é e sem conter mais nenhum significado a ser desvendado. Alguns estudiosos do gênero, como Linda Chase, chegaram a defender que, no entanto, esta seria a grande inovação: a literalidade, a coisa por ela mesma, uma "filosofia" que já havia se iniciado com o movimento anterior, a Pop Art. Mas outros artistas subsequentes iriam quebrar essa linhagem e "dar sentido" às pinturas hiperrealistas, fosse com enigmas e referências, como no caso de Claudio Bravo, ou então como vemos nas provocações e estímulos das pinturas de Gottfried Helnwein.

De qualquer maneira, Udo Kultermann retorna à pintura dos anos 20 para se referir à arte política e se fazer claro, em seu texto:

Uma comparação com a arte dos anos 20 irá mostrar a diferença: uma obra de arte funcionava então como uma arma política contra um determinado inimigo político, enquanto que hoje uma obra de arte reflete o mais possível autêntico conhecimento do que realmente acontece e existe na realidade. Em contraste à essa arte propagandística, a qual transcende seus próprios limites por conta da ação política, e pela qual ainda é praticada hoje, apenas a complexa e envolvente representação da realidade atinge uma impressão mais profunda e mais duradoura. Assim como Chaim Koppelman diz: "Eu acredito que a arte não é uma fuga da vida. Não existe algo como uma boa obra de arte que apresente uma falsa imagem da realidade".
Num sentido mais básico, a arte política renuncia as possibilidades de mudar as realidades humanas e criar uma nova escala de valores na qual uma situação específica pode originar ações políticas bem estruturadas e responsáveis. No New Realism [hiperrealismo], nas obras de Duane Hanson, por exemplo, uma realidade constituída artisticamente cuja transformação, que é refletida através do dispositivo da ilusão, ensina-nos a ver a outra realidade.
 (...)
Para ambas a ação artística e política, a base para a mudança e para novos conceitos viáveis é inquirir sobre a realidade. Não é simplesmente ignorância, mas a incapacidade de reconhecer e definir o processo de inquirir que tem atrapalhado nossos melhores esforços prévios, formado lideranças irresponsáveis e obscurecido a verdade. São os conceitos e valores ganhos pela pesquisa e pela arte da observação precisa que devem ser determinados pelo curso da história, não armamentos ou exércitos, ou a acumulação de pura técnica, militarização ou poder político.
 Os técnicos e os políticos servem para executar e carregar nossos ideais postulados por artistas, filósofos e cientistas, os quais definem novos valores para a sociedade. Conforme a realidade é definida por esses valores, são sempre as mentes criativas e questionadoras que estão continuamente gerando essas novas realidades. O que nós, como uma sociedade, consumimos é consequência do que nós desejamos; assim, técnicos apenas produzem o que é já considerado nossa necessidade; políticos, também, funcionam principalmente como instrumentos de mandatos parcialmente entendidos.
A responsabilidade de reconhecer e definir esses valores responsivos a essas realidades pertence à toda sociedade e os líderes desse processo de investigação devem ser o artista e o cientista. O cientista comunica esse conhecimento através de hipóteses lógicas e prováveis, enquanto o artista demonstra sua compreensão da realidade através de meios mais subjetivos. Ambos, contudo, dependem da intuição e da percepção, experimento e disciplina, objetividade e formas tangíveis de imagética. O artista também tem efetividade ao iluminar o passado. Isso é alcançado através de seu conhecimento de formas eternas, as quais não depreciam, mas sustentam nossa consciência dos arquétipos (p.23). 
Epiphany III (Presentation at the Temple), 1998, tinta a óleo e acrílica sobre tela. 210 cm x 310 cm
Gottfried Helnwein

"Para mim, arte é a mais alta forma de comunicação, feita esteticamente. A estética da arte é capaz de penetrar em áreas, assuntos os quais você antes desconhecia. Na minha opinião, esse é o papel do artista: oferecer uma oportunidade de mostrar ao mundo a palavra, filtrada pelo próprio mundo do artista, às pessoas."
Gottfried Helnwein (Silence of Innocence, Claudia Schmid)

terça-feira, 10 de dezembro de 2013

Gottfried Helnwein: O artista como antagonista da sociedade


"Como artista, você deve procurar a solidão, por dentro. Em algum momento, você deve superar as convenções, essas doutrinas, tudo que não faz sentido e seguir seu próprio caminho. Não há saída. Assim, o artista será sempre, até certo ponto, o antagonista da sociedade. Ele sempre parecerá suspeito. Sempre estará nos limites da ilegalidade ou pelo menos do embaraço. É inevitável. Mas um artista também vive dentro da sociedade, e seus trabalhos refletem essa sociedade, o tempo, seus medos, seus desejos, a loucura, a falta de sentido, expressando isso em sua arte. Então ele precisa estar firmemente enraizado em sua sociedade. O artista anda por uma corda bamba entre a criação de seu próprio universo fora da sociedade, enquanto permanece até certo ponto dentro dela. Essa é a grande questão... é o trabalho de Sísifo de cada artista."
Gottfried Helnwein. Silence of Innocence (Claudia Schmid, 2009)


"As an artist you must seek solitude, inside. At some stage you must overcome these conventions, overcome these dictates, this nonsense and go your own way. There is no escape. Therefore the artist will always be to some extent the antagonist of society. He'll always seem suspect. He'll always be bordering on illegality, or at least on embarrassment. It's inevitable. But an artist also lives within society, and his work reflects this society, time, its fears, its desires, the madness, the nonsense, expressing it in his art. So he must also be firmly rooted in society. The artist performs a tight-rope walk between creating his own universe outside society, while remaining to some extent within society. That's the great issue... the Sisyphus task of every artist."

sexta-feira, 6 de dezembro de 2013

Gottfried Helnwein: "Eu não me encaixo em nenhum sistema"



Durante a graduação na Academia de Belas Artes em Viena, a mesma que não aceitou Hitler como estudante (e isso, para Helnwein, foi um dos grandes erros dessa instituição na qual ele, inclusive, não graduou), Helnwein organizou uma Aktion que foi tipo uma rebelião com uns amigos (Die Akademie brennt, 1970). Nessa entrevista para a Süddeutsch Zeitung Magazin, ele conta qual foi o contexto. Vou traduzir mais ou menos a resposta dele:

"Aquela era a época certa para revoluções, não havia outras opções. A academia e as universidades pareciam formigueiros. Todas estavam cheias de neomarxistas, maoístas, trotskistas, spartakistas e qualquer outra coisa que eles próprios se insultavam, discutiam dia e noite sobre pôsteres do Che Guevara e sobre a emancipação do proletariado. Ali estavam as crianças ricas de pais burgueses que nunca viram verdadeiros trabalhadores por perto. Os verdadeiros operários, pelo que eu entendia, obviamente viviam num universo paralelo, porque eles, [os estudantes], não tinham idéia do que seria sua iminente liberação do sistema capitalista. E eles também não tinham nenhuma palavra sobre essa incoerência. Eles normalmente tinham noção de outras coisas: carros, futebol, televisão, cerveja e revistas pornográficas.
Para mim ficou bem claro que os debatedores jamais iriam fazer um verdadeiro motim. E eu mesmo permiti que a revolução que eu por tanto tempo esperei começasse. Eu chamei alguns amigos apolíticos e nós tornamos a academia um inferno fumacento. Todos extintores foram ativados, tinta feita por nós mesmos e bombas de fumaça e mau cheiro voavam por todos os lados, pelas janelas e eram jogadas no pátio.
Quando uma centena de policiais cercou o prédio, nós escalamos e fugimos pela janela da cafeteria."

domingo, 17 de novembro de 2013

Claudio Bravo

Claudio Bravo foi um pintor hiperrealista chileno nascido em 1936. Influenciado pela pintura renascentista, barroca e também surrealista, principalmente pelo pintor Salvador Dalí, Bravo viveu e trabalhou em Tangier, no Marrocos, começando a pintar em 1972. Conhecido principalmente por seus retratos, naturezas mortas e pinturas de objetos, ele também fez ilustrações, litografias, gravuras e esculturas em bronze. Sua morte ocorreu em Taroudant, no Marrocos, em 2011, por conta de um ataque epilético.

Dá para reconhecer que Bravo foi também um grande admirador de Velázquez, observando-se a pintura abaixo, que parece ser uma homenagem à famosa Las Meninas (1656), além de gostar do tema do vanitas, já que os crânios estão presentes nessas imagens. Os temas das pinturas de Bravo também fazem parecer que este se interessava por como o pintor renascentista estava se descobrindo ao se representar na tela também, não numa pose de autorretrato, mas de espelhamento, de se pôr como personagem na tela, e de modo que esta pudesse ganhar vida e interação com o observador.

Suas releituras do modo de vida medieval ganham um tom latino (e contemporâneo, como na última imagem, quando um garoto de calça jeans e fones de ouvido segura um cordeiro), ou quem sabe marroquino, já que o chileno esteve naquele país durante boa parte de sua vida. As vestimentas clericais católicas são substituídas pelas muçulmanas, na imagem em que um homem tem seu turbante puxado por uma criança. Maria não veste mais o véu, mas uma burca.

De certa forma, esse artista se aproxima de Helnwein, já que ambos têm uma admiração pela pintura renascentista e uma iluminação barroca em suas imagens, além de trazer esse estranhamento moderno nas imagens. Além de, obviamente, ambos serem hiperrealistas. E cada um em seu contexto: um austríaco (germânico) e outro latino-muçulmano.










segunda-feira, 28 de outubro de 2013

Agenda de eventos: São Paulo e Sorocaba

Novidades para novembro. Participarei de dois eventos na primeira semana do mês, um na Faculdade Cásper Líbero, em São Paulo, e outro na Universidade de Sorocaba. Para quem tiver interesse de conhecer um pouco sobre minha dissertação e morar nessas cidades ou na região, é uma oportunidade. A seguir, colocarei mais informações sobre cada um encontros, a começar pelo da capital:

I Simpósio Internacional de Imagem e Inserção Social

Data: 05 a 07 de novembro
Local: Faculdade Cásper Líbero. Avenida Paulista, 900, São Paulo. Sala Aloysio Biondi
Público: Alunos (graduação, lato sensu e strictu sensu), professores e interessados na área de comunicação e ciências humanas. Alunos dos programas de Pós-Graduação em Comunicação, Semiótica, Comunicação Visual, Artes.

Inscrições: Para participar é necessário que você envie, previamente, um e-mail com seu nome, RG, curso e nome da instituição que representa e as mesas que tem interesse em participar para eventos@fcl.com.br. Feito isto, aguarde a confirmação de sua inscrição. Gratuito.


O artigo que apresentarei: "My art is not an answer, it is a question. Uma análise do impacto das imagens de Gottfried Helnwein a partir dos casos da aquarela Life Not Worth Living e da instalação Selektion (Ninth November Night)"

Veja os outros painéis

VII Encontro de Pesquisadores em Comunicação e Cultura

Tema: Mídia hoje
Datas: de 04 a 08 de novembro de 2013
Local: Cidade Universitária Prof. Aldo Vannucchi, Universidade de Sorocaba (Uniso).

Inscrições - Programação

Minha apresentação será no dia 8/11, às 13h30, no painel GT4.

GT4: Mídia e Educação

SESSÃO A: 13h30min às 15h30min (Bloco F - Sala 113)
Coordenadora: Profa. Dra. Luciana Coutinho Pagliarini de Souza

Originalmente era no GT2, Imagens Midiáticas, mas tive que pedir modificação, porque ia cair no mesmo horário do evento na Cásper. Ainda não sei direito como vai ser a formação das mesas, porque a programação ainda não foi alterada depois que pedi esse remanejamento, mas atualizo aqui assim que tiver novidades.

Artigo que apresentarei: "Fotografando Sombras. Um olhar sobre as imagens obscuras de Gottfried Helnwein"

Espero contar com a presença de vocês e se algum dos artigos que serão apresentados nessas ocasiões forem publicados, vocês ficarão sabendo por aqui mesmo. :)

segunda-feira, 21 de outubro de 2013

Regina José Galindo

Esses tempos estive lendo e escrevendo sobre acionismo vienense para a minha dissertação. Agora, vasculhando minha timeline do Tumblr, vi essa imagem de uma das performances do Günter Brus, um dos artistas do Acionismo Vienense.

bodyanalysis / ações 1964-70

O Acionismo Vienense foi um movimento ocorrido nos anos 1960, em Viena, e contou com artistas como Günter Brus, Otto Mühl, Hermann Nitsch e Rudolf Schwarzkogler. Suas manifestações artísticas, que eram feitas em forma de happenings (performances improvisadas), tanto promoviam “ações com forte caráter ritualístico e religioso, onde sacrifícios de animais ou sevícias e mutilações ao próprio corpo do artista podiam ocorrer” (BAITELLO JR, 1990, p.88) quanto “happenings eróticos e orgiásticos que buscam a ruptura total com os tabus religiosos em relação ao corpo” (Idem).

Pensando agora, o movimento contou apenas com participações de homens! E, no caso de Brus, uma de suas ações mais marcantes foi a chamada "Kunst und Revolution", realizada na Universidade, em 1968. Nessa mesma ocasião, estavam presentes Otto Mühl e Oswald Wiener, que acompanharam o artista subir em uma cadeira, ferir-se com uma lâmina, urinar em um copo e depois beber, para então defecar e espalhar as fezes sobre o próprio corpo. Em seguida, Brus teria deitado no chão e começado a se masturbar enquanto cantava o hino nacional da Áustria. Em consequência, os três artistas presentes foram sentenciados a dois meses de prisão.

Günter Brus, Kunst und Revolution, 1968

Agora pensem numa mulher fazendo isso. Na verdade, não sei se isso aconteceria dessa forma e não proponho essa contraposição de uma maneira sexista, mas porque homens e mulheres têm uma sensibilidade diferente, quase que espiritualmente falando (animus e anima). Não sei se as coisas se dariam dessa forma. O que temos de mais próximo nesse sentido é a artista guatemalteca chamada Regina José Galindo, que faz performances desde 1999.

Limpieza Social, 2006

Seu trabalho é focado na violência contra o próprio corpo, seja em performances em que o público observa a agressão que a artista sofre ou quando ele participa das ações, como foi o caso de Alud (2011). Regina não só se preocupa em apontar os problemas sofridos pelas mulheres, mas todos os crimes políticos, as hierarquias sociais e segregações que enxerga como artista latina. Tornou-se conhecida principalmente depois de entrar no prédio do Congresso da Guatemala, em 2003, durante sua performance ¿Quién Puede Borrar las Huellas? (Quem pode apagar os rastros?), deixando marcas de seus pés sujos de sangue humano em protesto contra a candidatura do ex-ditador da Guatemala José Efraín Ríos Montt. Outra notável ação sua foi Perra (2005), na qual ela escreveu a palavra perra (cadela) em sua perna, em protesto contra a violência contra as mulheres.

Alud, 2011

No perdemos nada con nacer, 2000

No perdemos nada con nacer, 2000

Perra, 2005

Referências

BAITELLO JR, Norval. Mini-dicionário de Arte V. In: Revista Galeria nº 20. São Paulo: Área Editorial, 1990.
Regina José Galindo http://www.reginajosegalindo.com/

segunda-feira, 7 de outubro de 2013

Carl G. Jung – O problema do mal no nosso tempo

Seguindo a idéia dos posts anteriores, tanto sobre aquele sobre a culpa coletiva e sobre não entender como as pessoas são capazes de cometer certos crimes quanto o imediatamente anterior, no qual Marie-Louise Franz fala sobre o problema do mal e voltar para si mesmo, esse trecho do artigo O problema do mal no nosso tempo, de Carl Gustav Jung, aborda ambos os assuntos e dá uma iluminada nas idéias abordadas nos textos passados:

"A pessoa que deseja ter uma resposta para o problema do mal, conforme ele se apresenta hoje, necessita, em primeiro lugar, de autoconhecimento, ou seja, do conhecimento mais absoluto possível da sua própria totalidade. Precisa saber a fundo quanto bem pode fazer e de quantos crimes é capaz, e deve evitar encarar um como real e o outro como ilusório. Ambos são elementos da sua natureza e ambos estão destinados a vir à luz nele, se ele desejar — como deveria — viver sem enganar ou iludir a si mesmo. 
Mas, em geral, a maioria das pessoas está por demais distanciada desse nível de consciência; se bem que muitas pessoas hoje em dia possuem em si mesmas a capacidade para uma percepção mais profunda. Esse autoconhecimento é da maior importância, pois através dele nos aproximamos daquele estrato fundamental, ou âmago, da natureza humana onde se situam os instintos. Nessa camada profunda, estão aqueles fatores dinâmicos que existem a priori e que, em última análise, governam as decisões éticas da nossa consciência. Eles compõem o inconsciente e seus conteúdos, a respeito do qual não conseguimos emitir nenhum julgamento definitivo. Nossas idéias sobre o inconsciente estão fadadas a ser inadequadas, pois somos incapazes de compreender cognitivamente sua essência e estabelecer limites racionais para ele. Só podemos alcançar o conhecimento da natureza através de uma ciência que amplie a consciência; logo, o autoconhecimento aprofundado também exige ciência, isto é, psicologia. Ninguém constrói um telescópio ou microscópio com um estalar de dedos e boa vontade, sem conhecimento da óptica. 
Atualmente precisamos da psicologia por razões que envolvem a nossa própria existência. Ficamos perplexos e aturdidos ante o fenômeno do nazismo ou do bolchevismo porque nada sabemos sobre o homem ou porque dele fazemos apenas uma imagem distorcida e desfocada. Se tivéssemos um certo conhecimento de nós mesmos, o caso seria diferente. Estamos face a face com a terrível questão do mal e nem sequer sabemos o que está diante de nós, muito menos que resposta lançar contra ele. E, mesmo se soubéssemos, ainda assim não compreenderíamos "como as coisas chegaram a esse ponto". Demonstrando gloriosa ingenuidade, um estadista recentemente vangloriou-se de não possuir "imaginação para o mal". Muito certo: nós não possuímos imaginação para o mal, mas o mal nos tem em suas mãos. Alguns não querem saber sobre o mal e outros estão identificados com ele. Essa é a situação psicológica do mundo nos nossos dias: alguns se denominam cristãos e imaginam poder, por um simples ato de vontade, calcar o suposto mal sob seus pés; outros sucumbiram ao mal e não vêem mais o bem. O mal, hoje, tornou-se uma Grande Potência".

ZWEIG, Connie; ABRAMS, Jeremiah (orgs.). Ao Encontro da Sombra. O Potencial Oculto do Lado Escuro da Natureza Humana. São Paulo: Editora Cultrix, 2004

domingo, 6 de outubro de 2013

Marie-Louise von Franz sobre o problema do mal

Conheci Marie-Louise von Franz semana passada, na minha qualificação. Ela é uma psicóloga suíça junguiana que me foi sugerida a ser estudada para a minha dissertação. Encontrei várias entrevistas dela no YouTube, algumas bem curiosas, como esta aqui, na qual ela fala sobre o problema do mal e sobre, de certa forma, como as pessoas devem voltar para si mesmas em vez de sair às ruas e protestar, porque isso não adianta muito. 

Pelo que entendi, Marie-Louise não defende a censura, obviamente, mas não acha que valha muito a pena gastar dinheiro e energia em protestos e formatos do gênero, porque o que depende mesmo das coisas darem certo é que o inconsciente coletivo mude -  isto é, se a mentalidade das pessoas, em geral, não se modificar, não tem como novas idéias serem postas em funcionamento. E isso faz sentido, não? É um pensamento polêmico, ainda mais para quem acredita que sem protesto não há como mudar o pensamento, mas isso é relativo, já que nem sempre a mensagem é transmitida corretamente - como vimos recentemente nessas manifestações que aconteceram no Brasil. Por isso mesmo, vale a pena assistir ao vídeo.

quarta-feira, 2 de outubro de 2013

segunda-feira, 30 de setembro de 2013

Os discursos de Hitler e a culpa coletiva

Eu vi esse post do Update or Die sobre as fotos que Hitler tirava enquanto ensaiava seus discursos, a gestualidade que ele tentava dominar para então reproduzir mais tarde, quando finalmente chegasse ao poder. O fotógrafo Heinrich Hoffman era responsável por fazer as imagens do austríaco e, no final, era encarregado de se desfazer dos negativos das imagens que demonstravam o pior desempenho do futuro ditador. Mas algumas sobreviveram nos arquivos e foram publicadas em seu livro de memórias em 1955.


O autor do texto se pergunta como alguém conseguiu convencer uma nação com idéias tão absurdas como uma raça superior e outras propostas tão surreais. É realmente estranho para nós, latino-americanos nascidos no fim do século XX e vivendo no século XXI entender isso. Eu mesma, como estudante desse tema e totalmente fora da área de história, tenho extrema dificuldade pra entender (e é por isso mesmo que estudo) e é por estarmos nesse contexto mesmo que surgem outras perguntas que, quem esteve lá, não pensou.

Por exemplo, quando estive em maio em Viena, entrevistando o Gottfried Helnwein, perguntei se em algum momento o fato de ele sempre pintar e fotografar crianças loiras, brancas e de olhos claros e abordar a temática do nazismo não pudesse trazer à tona a idéia paradoxal de que ele estivesse também, por causa dessa escolha estética, abordando o arianismo. E não. Ele me disse que entendeu a pergunta, principalmente porque sou de um país de muitas etnias, mas a Áustria (e também a Alemanha) é, ou pelo menos era à sua época, um país predominantemente branco. Disse-me que nunca havia visto um negro, pessoalmente, quando era criança - isso era algo que se via na televisão. Ou seja, enquanto ele me contava isso, na maior naturalidade, soava quase absurdo: meu Deus! Como assim?! Porque aqui no Brasil é tão normal, há tanto tempo temos uma mistura étnica por aqui. Comentou que se ele fosse chinês, provavelmente fotografaria e pintaria apenas crianças chinesas e assim por diante, como também se houvesse a oportunidade de trabalhar com crianças de outras etnias antes, assim como em 2012 pôde fotografar crianças mexicanas, teria feito.

O que quero dizer com isso? Não podemos pensar como brasileiros o que aconteceu com alemães, austríacos e demais europeus. Dificilmente conseguiremos entender o que realmente foi o nazismo sem tê-lo vivido, ainda que dediquemos uma vida de pesquisa e leitura a isso, mas acho interessante, por exemplo, o que li sobre a questão da culpa coletiva em Jung. Em 1945, o psiquiatra suíço escreveu um artigo chamado Depois da catástrofe no qual ele analisou o sentimento que deu o nome de "culpa coletiva", pondo-o como conceito psicológico. Nesse texto, ele explica que a culpa de um ponto de vista jurídico só pode ser circunscrita a quem violou um direito, enquanto que como fenômeno psíquico, contudo, "ela se estende para além dos limites espaciais e humanos. Um bosque, uma casa, uma família, e até mesmo uma aldeia em que tenha ocorrido um crime sente internamente a culpa psíquica além de ser acusada externamente" (JUNG, 1988, p.18).

E é engraçado que nesse artigo Jung diz que como suíço, no entanto, ele não se vê como cúmplice do nazismo. Diz que os Europeus se punham assim, jogando a culpa das barbaridades da guerra para os alemães apenas, ainda que houvesse um campo de concentração a duzentos quilômetros dali. No entanto, como ele próprio exemplifica, se um hindu que viesse da Ásia e conversasse com ele sobre o assunto, o teria como simplesmente um europeu e as distâncias entre os continentes tornariam os duzentos quilômetros entre a Suíça e Auschwitz irrelevantes.

O mundo discrimina a Europa porque, em última instância, foi em seu solo que cresceram os campos de concentração. A Europa, por sua vez, segrega a Alemanha, apontando as nuvens de culpa que recobrem esse país e o seu povo, pois foi na Alemanha e pelos alemães que tudo isso aconteceu. Nenhum alemão pode negar, da mesma forma que nenhum europeu ou cristão, que o crime mais terrível de todos os tempos foi cometido em sua casa. A Igreja cristã pode cobrir com cinzas a cabeça e rasgar as vestes pela culpa de seus filhos, mas as sombras dessa culpa recaíram sobre eles e sobre toda a Europa, a mãe dos monstros. Da mesma maneira que a Europa precisa ajustar contas com o mundo, a Alemanha deve fazê-lo em relação à Europa. (...) A culpa coletiva psicológica é uma fatalidade trágica; atinge a todos, justos ou injustos, que, de alguma maneira, se encontravam nas proximidades do crime (JUNG, 1988, p.19).

Apesar de Jung acreditar que uma pessoa razoável seja capaz de distinguir entre o sentimento de culpa da verdadeira culpa, isto é, quando o indivíduo realmente cometeu algum delito, o psiquiatra é um tanto pessimista quanto à situação. Isto porque há muita irracionalidade envolvida no processo e quando diz que a culpa coletiva é um preconceito ou uma condenação injusta, Jung não só concorda como também diz que esta é, justamente, a sua essência irracional: "ela jamais se pergunta pelo justo e o injusto, ela é a nuvem sinistra que levanta no lugar de um crime inexpiado" (JUNG, 1988, p.20). Como fenômeno psíquico, a culpa coletiva não condena aqueles que atinge, mas constata um fato.

Para exemplificar uma situação dessas, Jung supõe um homem que vive numa sociedade em que um crime é cometido e acaba suscitando sentimentos apaixonados e interessados por parte do público. Essas emoções demonstram que "praticamente todo mundo, desde que não seja insensível ou apático de forma anormal, é excitado pelo crime. Todos vibram conjuntamente, todos se sentem dentro do crime, tentam compreendê-lo e esclarecê-lo... Algo se acende, o fogo do mal que flameja no crime" (JUNG, 1988, p.21). Citando Platão, o psicanalista suíço lembra que a visão do feio provoca o feio na alma e a indignação diante do crimoso provoca a reação violenta, mas ao mesmo tempo apaixonante, na qual o espectador tenta punir o infrator já dentro da sua própria alma. E, assim, "o assassinato acontece, em parte, dentro de cada um e todos, em parte, o cometeram. Seduzidos pela fascinação irresistível do mal, todos nós possibilitamos, em parte, a matança coletiva em nossas mentes e na razão direta de nossa proximidade e percepção" (Idem).

Ou seja, não precisamos matar alguém com as mãos para poder, em nossas almas (ou mentes), repetir o ato. É a sedução pelo mal, a emergência do Vampyroteuthis sob a forma de romantismo do tipo nazismo, sob a forma de Wotan, de sombra.

Disposições morais fortes, porém, são infelizmente raras. Quando os crimes aumentam, a indignação predomina e o mal se converte em moda. De santo, louco e criminoso todos temos 'estatisticamente' um pouco. Graças à essa condição humana universal existe, em todas as partes, uma sugestibilidade correspondente ou propensão. A nossa época, isto é, os últimos cinquenta anos, preparou o caminho para o crime. Será que, por exemplo, o grande interesse pelos romances policiais não nos parece suspeito? (JUNG, 1988, p.21).

São só alguns pensamentos e algumas amostrinhas do que tenho descoberto durante minhas pesquisas do mestrado. :) Eu já tinha dado uma amostrinha dessas idéias neste post com uma citação dessa obra do Jung, mas aqui desenvolvi um pouco mais, linkando com outras postagens. Espero que tenham gostado.

Referências

JUNG, Carl Gustav. Aspectos do Drama Contemporâneo. Petrópolis: Editora Vozes, 1988

PS: Sobre a teatralidade de Hitler, a forma como ele fazia o discurso e como as pessoas entravam nisso de um ponto de vista oratório, sem entrar no mérito da oratória mesmo e da publicidade, eu acredito que isso tenha muito a ver com a questão do ritual. Agora eu não tenho exatamente referências suficientes para escrever um bom post sobre isso, apesar de ter estudado um pouquinho sobre isso durante a graduação, com ajuda do meu orientador Prof. Dr. José Eugenio de Oliveira Menezes. Conversei justamente sobre isso com uns amigos no fim de semana. Se tiverem interesse sobre isso, posso dar uma lida em algum material e fazer um novo post futuramente, só me deixem saber mesmo.

quinta-feira, 19 de setembro de 2013

The Intrusion, de Gottfried Helnwein, e a fotografia de Salpetriere

Meu orientador da iniciação científica, Prof. Dr. Walter Lima Jr. dizia que quando estamos pesquisando, vemos nossa pesquisa em tudo. E eu tenho essa mania mesmo. Mas hoje as pessoas estavam compartilhando esse artigo sobre os 10 casos mais bizarros de histeria coletiva, no Facebook, aleatoriamente, e por acaso a imagem de divulgação do link era esta:


Infelizmente, a única informação era "reprodução" e o blog de onde eles traduziram o artigo. Mas, felizmente, estamos em 2013 e temos a ferramenta de pesquisa de imagens do Google. E descobri que essa imagem faz parte do livro Invention of Hysteria – Charcot and the Photographic Iconography of the Salpetriere (1982), de Georges Didi-Huberman. Disponível para leitura neste link, trata-se de um livro sobre o caso do hospital Salpetriere, em Paris, que era dirigido pelo neurologista Jean-Martin Charcot. Durante o século XIX foram feitos vários registros fotográficos de pacientes, de modo a tentar entender melhor o que se passava com aquelas pessoas, documentando aquilo que eles chamaram de "histeria".

E coincidentemente esses dias, enquanto estava escrevendo minha dissertação, estava analisando a aquarela The Intrusion (1971), do Gottfried Helnwein.


No início da carreira, Helnwein trabalhava muito com aquarelas de crianças deformadas. Suas imagens eram bem mais agressivas e com conteúdo até um pouco erótico, de certa maneira. Aqui tenho minhas dúvidas se ele chega a fazer alguma alusão à fotografia dos experimentos em Salpetriere, já que seu intuito me parece mais falar sobre os abusos contra as crianças - nos anos 1970, Helnwein se dedicava muito à violência contra a criança, temática pouco abordada na mídia austríaca. Especialmente porque no segundo plano há também um adulto pondo os dedos na boca de um garoto, o que me parece um pouco abusivo e erotizante também. Mas a semelhança me chamou a atenção, de qualquer maneira.

terça-feira, 10 de setembro de 2013

Tese de doutorado sobre Hermann Nitsch e Genesis P-Orridge



Estava aqui escrevendo minha dissertação quando, inevitavelmente, me deparei com algo tão interessante que precisei fazer esse post para compartilhar. Achei uma tese de doutorado que estuda as obras do artista vienense Hermann Nitsch, de quem já falei aqui no blog, comparando com o Helnwein, e com Genesis P-Orridge, da banda Throbbing Gristle, da qual também já comentei mais anteriormente, quando estava estudando a Nachtmahr. Incrível. Incrível mesmo como as coincidências acontecem.

Eu não li a tese, acabei de encontrá-la e dei só uma olhadinha, mas me interessou muito pelo fato de ser uma análise filosófica e psicológica e já vi o nome de Jung ali nas primeiras páginas, o que me deixa muito satisfeita, porque Nitsch sempre evoca Freud em primeiro lugar. Mas tenho quase certeza que vale pelo menos a conferida para quem gosta de música industrial e arte, isto é, para todos que acompanham este blog! O material está disponível para download gratuito.

sexta-feira, 23 de agosto de 2013

Gottfried Helnwein - Der Ring des Nibelungen

Gottfried Helnwein foi responsável pelo palco, figurino e maquiagem da ópera Der Ring des Nibelungen (O Anel dos Nibelungos), ciclo de quatro óperas épicas de Richard Wagner. São adaptaçõs dos personagens da mitologia nórdica e do Nibelungenlied, a Canção dos Nibelungos, um poema épico escrito na Idade Média, por volta de 1200.

Wagner escreveu o libreto e a música de 1848 a 1874, o que totalizam vinte e seis anos, porém ele não se dedicou esse tempo todo a apenas essa obra. As óperas que compõem o ciclo são, em ordem cronológica do enredo, Das Rheingold (O Ouro do Reno), Die Walküre (A Valquíria), Siegfried e Götterdämmerung (O Crepúsculo dos Deuses). Apesar de serem apresentadas individualmente, a intenção do autor era que fossem apresentadas em série.



Com coreografia de Johann Kresnik, a primeira parte de Der Ring des Nibelungen contou com Rheingold e Walküre e foi apresentada na Bonn Opera, na Alemanha, em 2006.












terça-feira, 6 de agosto de 2013

Às Sombras do Nazismo. Cultura pop e violência em Gottfried Helnwein (I EBPC)


Nos dias 1, 2 e 3 de setembro acontece em São Paulo o I Encontro Brasileiro de Pesquisa em Cultura, Pesquisa e produção do conhecimento para além da universidade, do qual participarei no segundo dia, na mesa de artes visuais, apresentando meu artigo "Às Sombras do Nazismo. Cultura pop e violência em Gottfried Helnwein" por volta das 14 horas, na Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo, situada à Avenida Arlindo Bettio, 1000 – Ermelino Matarazzo, São Paulo – SP.

Vocês podem conferir a programação neste link e se inscrever para assistir à apresentação aqui.

Às Sombras do Nazismo
Cultura pop e violência em Gottfried Helnwein

Resumo

Gottfried Helnwein é conhecido por seus quadros e fotografias em que crianças aparecem junto ao tema do nazismo e da violência, numa estética soturna que se contrasta à presença de personagens da cultura pop. Sua obra traz a memória de uma infância vivida na Viena pós-Segunda Guerra Mundial, à chegada do capitalismo americano. O artigo busca entender como Helnwein leva o midiático às artes plásticas, promovendo debate sobre a violência, e propõe a abordagem do nazismo como representação do sombrio.

Palavras-chave: Gottfried Helnwein, nazismo, sombra, cultura pop, artes plásticas, fotografia



Mesa: Artes visuais

Luiz Sérgio de Oliveira e Caroline Alciones de Oliveira Leite
“I Exposição Nacional de Arte Abstrata [1953]: à frente de uma ruptura”

Priscilla Barranqueiros Ramos Nannini
“Livro-objeto, diálogos da visualidade”

Lidia Zuin
“Às sombras do nazismo. Cultura pop e violência em Gottfried Helnwein”

Jade Samara Piaia e Edson do Prado Pfutzenreuter
“As linguagens artísticas e o design gráfico no circuito cultural artístico”

sábado, 27 de julho de 2013

Verbete de Gottfried Helnwein na Wikipedia em português

Esse post é apenas para avisá-los de que agora há um verbete na Wikipedia em português sobre o Gottfried Helnwein. Sou eu quem está tomando conta do conteúdo que, por enquanto, ainda está em fase de construção, porém já dá pra ter uma idéia de quem é o artista. Espero que gostem. :)




quarta-feira, 17 de julho de 2013

Música experimental no Brasil, música industrial no exterior

A Petrobrás junto à TV PUC, em 2003, lançou o documentário Alquimistas do Som sobre a música experimental no Brasil. Um gênero que passou um pouco despercebido diante do brilho cultural da vertente tropicalista, a música experimental possui uma sofisticação e uma conexão com a cena de outros países que vale a pena ser ressaltada aqui no blog, onde tratamos vez ou outra sobre a música industrial, por exemplo. A obra conta com depoimentos de Tom Zé, Egberto Gismonti, Carlos Rennó e Arrigo Barnabé, além do maestro Júlio Medaglia, Lenine e Arnaldo Antunes.


Logo nos primeiros minutos do documentário, Tom Zé aparece comentando sobre a performance Música e Músicas, de 1978, no qual a banda utiliza uma espécie de sampleamento de gravações de rádio para compôr uma canção múltipla que, aos poucos, vai se complementando com a presença de enceradeiras, serrotes, rádios a pilha e outras ferramentas do cotidiano que se misturam a violões e vocais repetitivos ou que cantam jingles de publicidade. Música dadaísta, música ferramental, música da fábrica, industrial. Essa performance me chamou muito a atenção porque me lembrou imediatamente o começo do filme Halber Mensch, filmado por Sogo Ishii, em 1986, isto é, 8 anos depois com a banda alemã de música industrial Einstürzende Neubauten.



À direita, "Alquimistas do Som" (00:01:28). À esquerda, "Halber Mensch" (05:38). O primeiro usa uma enceradeira, o segundo usa uma lixa contra uma placa de metal

Alquimistas do Som (00:01:49) usando serrotes contra uma superfície metálica. Halber Mensch  (05:12) usando um bastão de metal contra um carrinho de supermercado

Alquimistas do Som (00:01:51), instrumentos musicais + instrumentos de solda. Halber Mensch (05:57) uso do martelo contra superfície metálica em substituição de baquetas e tambor

É claro que o estilo do Einstürzende Neubauten é bem diferente, mas a estética da performance e as referências feitas ao cenário industrial, a crítica à mídia e a colagem dadaísta são características da música experimental brasileira que entram em congruência com a música industrial que acontecia lá fora. Mesmo porque isso foi em épocas próximas, levando em conta que a música industrial começou com bandas como Throbbing Gristle, Cabaret Voltaire e Einstürzende Neubauten justamente no fim dos anos 70.

Fica aí a sugestão.

terça-feira, 16 de julho de 2013

Fascínio pelo mal, em Jung

Em 1945, Jung escreveu isso sobre a culpa coletiva sentida pelos alemães e pelos europeus por conta dos crimes cometidos pelo nazismo e durante a Segunda Guerra Mundial:

"A sensação que todo crime provoca, o interesse apaixonado pela perseguição e julgamento do criminoso, etc., demonstram que praticamente todo mundo, desde que não seja insensível ou apático de forma anormal, é excitado pelo crime. Todos vibram conjuntamente, todos se sentem dentro do crime, tentam compreendê-lo e esclarecê-lo... Algo se acende, o fogo do mal que flameja no crime. Platão já sabia que a visão do feio provoca o feio na alma. A indignação e a exigência de punição se levantam contra o assassino e isso tanto mais violenta, apaixonada e odiosamente quanto mais ferver a chispa do mal dentro da própria alma. É um fato inegável que o mal alheio rapidamente se transforma no próprio mal, na medida em que acende o mal da própria alma. O assassinato acontece, em parte, dentro de cada um e todos, em parte, o cometeram. Seduzidos pela fascinação irresistível do mal, todos nós possibilitamos, em parte, a matança coletiva em nossas mentes e na razão direta de nossa proximidade e percepção. Com isso, estamos irremediavelmente imiscuídos na impureza do mal, qualquer que seja o uso que dele fizermos. Nossa indignação moral cresce em virulência e desejo de vingança quanto mais forte arder em nós a chama do mal. Disso ninguém pode escapar, pois somos todos humanos e pertencemos igualmente à comunidade dos homens. Assim, todo crime desencadeia num recanto de nossa mente múltipla e variada uma satisfação secreta que, por sua vez, em caso de disposição moral favorável, produz uma reação oposta nos compartimentos vizinhos. Disposições morais fortes, porém, são infelizmente raras. Quando os crimes aumentam, a indignação predomina e o mal se converte em moda. De santo, louco e criminoso todos temos 'estatisticamente' um pouco. Graças a essa condição humana universal existe, em todas as partes, uma sugestibilidade correspondente ou propensão. A nossa época, isto é, os últimos cinquenta anos, preparou o caminho para o crime. Será que, por exemplo, o grande interesse pelos romances policiais não nos parece suspeito?" 
(Carl G. Jung, Depois da catástrofe, 1945)

terça-feira, 2 de julho de 2013

Fotos coloridas do Terceiro Reich são encontradas em arquivos da Life

Artigo publicado na Motherboard


O partido de Hitler é conhecido pelo grande uso de simbolismos em suas campanhas. Hoje, a utilização de bandeiras enormes, águias gigantes e públicos massivos e alinhados tem merecidamente deixado uma impressão sinistra e tem sido efetivamente copiada em ficções que emulam estados totalitaristas brutais. Ainda que muitos de nós saibamos quão poderosas a propaganda e a máquina imagética de Hitler foram, vê-las em cores nessa maravilhosa série fotográfica da revista Life é como um soco no estômago.


Recentemente, a revista Life tem resgatado de seus arquivos ótimas fotografias antigas e que, às vezes, sequer haviam sido vistas. (O tributo ao fotógrafo de guerra Larry Burrows é particularmente poderoso). Mas a Life se superou com a série de Hugo Jaeger, que foi um dos fotógrafos pessoais de Hitler.


Ver cidades inteiras adornadas por bandeiras com a suástica é assustador. Mas vê-las em cores é ver quão chocantes são essas bandeiras vermelhas, no cenário. É como uma maré vermelha inundando cada canto de uma cidade.

É óbvio que essa era a impressão que Hitler e sua máquina de propaganda queriam; que o partido nazista era uma força imparável e a única opção era se juntar a ele.


O poder de Hitler tem parte de sua origem no simples culto das estéticas com as quais ele compactuou. Ao se deparar com tal incrível e eficiente máquina, a qual parecia pintar tudo de vermelho, por onde quer que passasse, era difícil alguém divergir. E conforme Hitler foi ganhando poder, isso ficou cada vez mais forte.


Mas imagens sozinhas, ainda que poderosas, não podem sustentar um movimento político sozinhas. Enquanto o partido nazista fazia sucesso essencialmente por dizer "Veja, todos estão conosco, junte-se a nós ou será deixado para trás (ou assassinado)", isso não era 100% bem sucedido. Dissidentes, tanto nacional quanto internacionalmente, continuaram existindo. Enquanto Hitler retratava seu "Reich de Mil Anos" como invencível e abrangente, ao mesmo tempo em que cometia indizíveis atrocidades durante seu reinado, os Aliados mantiveram esse legado por apenas dez anos.


Tal grosseira simplificação é uma parte básica de qualquer livro de história do século XX, mas as fotos em preto e branco às quais nós estamos acostumados a acompanhar simplesmente não retratam a cena nem perto daquilo que elas parecem, em cores. Apesar do tema, as fotos de Jaeger são tecnicamente impressionantes. O filme 35mm Kodachrome foi lançado em 1936 e foi apenas depois disso que a fotografia em cores foi lentamente chegando às mãos dos profissionais.

É até mesmo um exemplo incrível de como desenvolvimentos técnicos podem ser incríveis, mesmo no campo das artes; poucos anos depois do advento comercial e tecnológico da filmagem em cores, ela passou a ser usada para criar imagens que evocassem ainda mais emoções do que as fotografias em preto e branco, assim como é até hoje. Nesse sentido, as habilidades de Jaeger com a nova mídia é notável se nos basearmos em seu portfolio, apesar de este ter sido infelizmente e em boa parte utilizado para documentar a vida do mais notório vilão da história. Mas isso é o que é mais fascinante dessas fotos, especialmente do ponto de vista da inovação. Eu duvido que químicos especialistas em filmes fotográficos que adivinharam como replicar cores esperaram que elas seriam para propaganda tão rapidamente.


Mas tão chocante quanto sejam essas imagens são em cortes, é importante lembrar que enquanto a máquina de propaganda hitlerista era poderosa, ela não era suficiente. Assim como o editor da Life.com Ben Cosgrove escreve em seu artigo que acompanha as fotografias, o qual você deve ler, "nunca é demais lembrar é preciso mais do que emblemas - não importa quão autoritários eles possam ser, ou quão transcendentais eles podem parecer - para transformar um movimento em uma força política, social e militar estável.


E essa é a verdade. Há um motivo pelo qual o partido nazista usou tão fortemente os simbolismos que têm sido objeto de caricaturas em filmes como 1984 e Death Race 2000: não é algo simples e politicamente unidimensional, mas também historicamente. O conceito de cobrir todo metro quadrado de espaço público com bandeiras representando o Partido, qualquer que este seja, é um truque antigo, e um dos quais nós quase automaticamente associamos a governos totalitaristas.

É porque pensamento livre requere estética livre, se empurrarem despoticamente imagens em sua face, isso irá trapacear a sua mente, e alguns irão sempre contrariar. Se olhar as fotos digitalizadas de algo maligno morto 80 anos atrás, em sua tela, fez suas batidas cardíacas aumentarem, então você entende totalmente.